Mais um conto da série, escrito por Carlos Palmito. Dessa vez Carlos entra numa atmosfera de mistério, como se dois espiões se encontrassem numa lanchonete suja numa estrada deserta. Vale a pena conferir.
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ARco IRis grelhaADO
por Carlos Palmito
IG: @c.palmito
De todos os restaurantes existentes, não percebia o porquê de o encontro ser naquele; uma lanchonete decrépita, plantada à beira de uma estrada mal iluminada.
Esta era frequentada na sua maioria por párias da sociedade. Camionistas, motoqueiros, inutilidades humanas a tresandar a suor e tabaco, capazes de vender a própria mãe por meia dúzia de tostões.
Chegou, eram oito e vinte da noite, a lua brilhava palidamente nos céus, concedendo ao mundo, e a este local em particular, uma aparência fantasmagórica.
Ficou quinze minutos no carro, ainda com motor a trabalhar, a refletir, existia muito em que pensar, decisões a serem tomadas. Teria coragem para seguir com o plano?
Finalmente decidiu-se, rodou a chave na ignição, cortando com isso a vida de cento e vinte cavalos, abriu a porta, saiu, sentindo-se ser arrepiada pelo toque gélido da noite, ou da própria morte, quem sabe. Trancou o veículo e partiu em passo firme na direção daquela coisa a que chamavam de “arco-íris grelhado”.
Mal transpôs a entrada, adornada com a artificialidade de um arco-celeste a néon, foi inundada por uma intempérie de odores, gordura, suor, cerveja, tabaco, cores grelhadas na sua exponencia máxima, sentiu uma náusea avassaladora, como se tivesse levado o murro de um pugilista direto no estômago.
Ficou por segundos ali, estagnada, a inspirar pausadamente, para se obrigar a adaptar ao meio, enquanto contemplava o ambiente cadaveroso daquele pote de oiro na ponta de uma qualquer cadência cromática.
Ao fundo, junto à parede traseira estava uma mesa abandonada, desprezada, esquecida pelo mundo decadente confinado a quatro paredes, oculta pela névoa de tabaco; aparentava ser ideal, ali poderia, quem sabe, passar despercebida, invisível perante os demónios que reinam a noite e ingurgitam pigmentações grelhadas, pelo simples prazer de ver o universo dissipar-se em cinza.
Avançou na sua direção, forçando passagem por aquele desfile de aberrações humanas, velhos barrigudos a babar perante a visão dos decotes aparatosos das empregadas, vangloriando-se dos seus dias de juventude enquanto coçavam o rabo.
Sentou-se, de frente para a porta, era impreterível alcançar a globalidade deste pequeno inferno Dantesco com o seu olhar atento, decorar toda a soberba irracional do lugar, vampiros entre lobas, e acima de tudo, atentar-se a quem entra.
Cinco minutos passaram até ter na sua frente uma empregada, afinal não era assim tão impercetível, a fitá-la em interrogação, com um bloco de notas numa mão e um lápis na outra.
— Então querida, (engraçado como somos todos queridos e queridas perante as empregadas de lanchonetes) o que vai desejar?
Piscou os olhos, como quem não entendeu a pergunta pronunciada por uma voz esganiçada, que lembrava unhas a rasparem numa ardósia mais negra que a alma humana, a velha, (afinal nem todas as empregadas são miúdas saídas das capas da playboy) devido à falta de reação ia para indagar de novo.
— Uma tarte de maçã e um café — respondeu, ansiando que a carcaça na sua frente não abrisse mais a boca.
Teve sorte, a múmia de olheiras profundas e tetas que há muito deixaram de lutar com a gravidade, apontou o pedido no bloco, partindo em direção a outra mesa.
Mais pedidos existiam para ela apontar neste ciclo infindo da sua existência, onde vive para anotar, pedir, seguir, talvez nem durma, daí as olheiras, quem sabe estará perpetuamente aqui, num purgatório desenhado exclusivamente para ela, empregada das monstruosidades noturnas.
Enquanto aguardava o pedido, Andreia distraiu-se a olhar para o exterior, o luar não chegava a todos os recantos do estacionamento, as sombras dançavam ao sopro ritmado de uma jukebox cósmica, como marionetas dedilhadas com uma sensualidade capaz de conceber orgasmos até à mais frígida rainha dos gelos.
Foi arrancada dos pensamentos sobre deuses, vivos e mortos, dos luares incapazes de iluminar a noite na universalidade, pelo som retinente de uma campainha.
Alguém abriu a porta, proporcionando nesse ato a entrada de um glacial vento exterior, que por breves momentos conseguiu purificar o ar fastiento da escumalha perene da civilização nesta caixa de Pandora. Sorriu perante a visão do ser que entrou, a sua espera chegou ao fim.
Nesse mesmo instante, a criatura do purgatório regressou com a tarte e o café, que colocou sobre a mesa em conjunto com a anotação da conta.
— Deseja algo mais, querida?
O som da voz despojada de emoção quase que lhe estraçalhou o cérebro, sentiu-o rasgar a barreira do audível, nem percebia o porquê, talvez fosse o timbre, ou a falta de entoação, talvez a voz fosse mais velha e gasta ainda que a dona, um espectro maligno na escuridão notívaga, um duende guardião de um pote sem oiro.
— Para mim, é um café — respondeu a pessoa que tinha acabado de entrar, enquanto se sentava de frente para Andreia, fixando-a diretamente no verde dos seus olhos.
Uma vez mais a criatura partiu na sua infindável tarefa, escrava inglória de uma lanchonete perdida entre o paraíso e o inferno.
— Conseguiste o que te pedi?
— Claro que sim, — retrucou a pessoa na frente de Andreia, e com um sorriso epigramático acrescentou: querida. — Colocando de seguida uma cara mais séria. — Mas não pode ser entregue aqui, nem sei se alguém me seguiu, acho que não, contudo, não estamos livres de perigo!
— Acredito! — voltou a mulher dos olhos verdes, num sussurro quase ininteligível aos ouvidos dos suínos que chafurdam nesta pocilga de sete cores. — Afinal desde que o teu nome apareceu naquela lista que tens a vida em risco… temos.
Nesse instante a garçonete regressou com o café, que colocou em cima da mesa, adicionando o valor ao papel que se encontrava desprezado em cima da mesa.
— Desejam algo mais? — indagou, esquecendo desta vez o “querida”, muito provavelmente essa noite seria vergastada com um chicote de couro por um demónio de lanchonetes devido a tal descuro.
— Não, estamos bem, obrigado querida — disse Andreia, mirando pelo canto do seu olhar prásino, a pessoa na sua frente gargalhar, enquanto colocava a mão sobre um envelope lacrado, estaria ele ali anteriormente, em cima da mesa? Não se recordava.
O robot em modo de repetição partiu de novo, anotar, pedir, seguir, a repetição perfeita para uma garçonete que já se tinha esquecido do seu próprio nome, por vezes, quando fumava um cigarro na casa de banho conseguia visualizá-lo, cravado na sua farda secular, embora com as lágrimas fosse difícil de ler o que lá constava.
O ser na frente de Andreia pegou na chávena e bebeu um golo do café, sentindo nesse mesmo instante uma mistura intangível de queimado com azedo e uma pitada de deceção no sabor.
Fez uma carantonha de repulsa, baixou a chávena, buscando dissimular nos fundos da sua memória o paladar que tinha acabado de experienciar, por tudo o que lhe era sagrado, jamais queria voltar a sentir algo tão asqueroso no seu palato.
Levantou os olhos para a inocência da mulher de olhos verdes, ela envolvia os seus cabelos negros com a ponta dos dedos a olhar distraidamente o café por beber.
— Em que pensas, Andreia?
Esta mirou o olhar castanho na sua frente, tentou esboçar um sorriso, mas sentia o ânimo a diminuir, sentia-se como o patinho feio sem qualquer esperança de se vir a tornar um cisne.
— Como é que nos vamos safar desta, Fil… — foi imediatamente interrompida pela criatura de olhos castanhos.
— Chiu, cala-te, não sejas parva — os olhos de avelã estavam em pura estupefação. — Não digas o meu nome, fiz muito para ele passar despercebido, nem sei se está aqui alguém que me possa reconhecer.
Andreia corou, quase que estragava tudo com a distração, fixou a atenção na janela, no lixo que redemoinhava ao sabor do vento, iluminado de quando aquando pela lua cheia, “os lobos andam à solta na cidade do pecado!”.
— Desculpa.
A entidade que lhe fazia companhia levantou-se, vestiu o casaco de couro negro e colocou um cachecol cinza mesclado a branco a envolver-lhe o pescoço.
— Vou ter que ir — piscou um dos olhos castanhos, e gracejou. — Querida!
— Eu já pedi desculpa.
— Calma amor, não é pela distração, essa foi perdoada ainda antes de sair — respondeu. — Tenho coisas a fazer. Espera uns minutos aqui, e depois vai ter comigo — deu-lhe um beijo na testa. — Se tudo correr bem, amanhã por estas horas estaremos longe desta aberração de país das maravilhas.
— Como é que te vou encontrar?
— Tu descobres, não te preocupes, tenho fé em ti, pintinho.
Andreia ficou a contemplar o ser de olhos castanhos e caracóis loiros sair do alcance das sete cores do arco-íris.
— Até já! — murmurou.
Após quinze minutos que foram passados a olhar para o vazio absoluto, levantou-se.
Pegou na conta para pagar e no envelope lacrado, dirigiu-se à caixa registadora, apresentando o papel onde estava o valor a entregar.
Depois de colmatada a dívida, saiu, caminhou em passos lentos na direção dos seus cento e vinte cavalos, um vulto na noite, uma sombra entre milhares, o vento rugia agora ferozmente, animais notívagos de um mundo paralelo, ouvia o zumbido de luzes néon que apagavam e acendiam, idêntico ao de moscas a cair nas armadilhas elétricas, púrpuras.
Abriu a porta da sua viatura, e sentou-se, examinando o envelope na sua mão, a decidir-se se o abria ou não.
As luzes do slogan da lanchonete deram um estrondo, apagando com isso parte das letras, sobrando apenas “AR IR ADO”, ar irado, tal como a fúria do vento no mundo para lá da fronteira do seu carro.
Decidiu-se a abrir o envelope, já o diz o provérbio “ver para querer.”
De lá retirou um papel perfumado, com o timbre de um hotel, onde se lia:
“No local de onde as carruagens partem, levando com elas almas para todos os cantos do mundo, estão guardados tesouros em pequenos caixões metálicos.
Terás que percorrer três vezes os círculos de Dante e o dobro dos pecados mortais.
Aí, nesse ataúde estará o teu destino, o local onde me encontrarás para fugirmos da rainha de copas.”
Raciocinou por uns instantes, até que riu, já não era um pintinho sem a galinha mãe por perto, ela era o próprio capoeiro, e tinha a certeza máxima do que fazer, e aonde ir.
Rodou a chave na ignição, e os seus cento e vinte cavalos relincharam em conjunto.
Os demónios de carnaval podiam dançar nesta noite, mas nenhum a conseguiu roçar sequer até à data.
AUTOR
Carlos Palmito
Meu camarada Carlos! Vou lendo e aprendendo com os teus escritos. Sensacional! Você é o cara!
Parabéns! Valleti Books, Luiz e Carlos.
Carlos, você deixa nossos olhos atentos, nossos ouvidos escutando os sons de teus escritos. Sua escrita é detalhista, valiosa. Tenha certeza de minha admiração! 😍
Ri muito com o Carlos lendo seus comentários.
Eu não consigo descrever a satisfação que é ler os contos (de antemão) e sair em busca da imagem perfeita. Para quem não tem a devida noção, a confecção desse caderno leva uma semana. Primeiro o Carlos passa a semana a escrever. Depois ele me envia no sábado ou domingo. Leio, faço sugestões de alterações que, às vezes ele concorda e outras não e está tudo bem. É assim que nos entendemos. Depois de tudo pronto, isso já na segunda à noite, aí é a hora da imagem. Sempre procuro algo que sintetize o conto do Carlos. Escolho várias imagens e envio-lhe e só depois finalizamos.
Por toda essa explicação, gostaria de…
Espero que estejam a gostar tanto destas criaturas quanto eu :) deixem os vossos comentários.
Tem sido um prazer enorme este processo de criatividade, a criação desta cidade para... mim, mas acima de tudo, para vocês ;)
Aproveito uma vez mais, e de novo, mesmo caindo em repetição, não me importo, pois tenho que agradecer, tanto à família ValletiBooks por me cederem este espaço semanal, este caderno que vai crescendo a cada quarta-feira, como a todos vós, leitores, que acompanham esta aventura aqui, logicamente não só das criaturas, mas de todos os cadernos que a valleti nos proporciona. E quero agradecer também ao Luiz Primati, que lê os contos antes de serem publicados, faz correções, ensinando-me com isso alguns truques,…