Alessandra Valle conta um pouco sobre o universo das pessoas desaparecidas e a rotina do departamento em que trabalha. Diretamente de Portugal, Carlos Palmito nos brinda com o segundo capítulo de um conto escrito em 2005 e foi re-escrito agora, especialmente para o nosso blog. Eu, Luiz Primati, trago um conto de 2018, publicado inicialmente no Facebook em partes e depois entrou para o livro: "Velhas Histórias Urbanas" que foi baseado num fato. Hoje trago a parte final do conto. Descubra quem era o fantasma que assaltava a geladeira. E por último, Sidnei Capella apresenta um novo conto sobre espiritualidade.
Esse caderno tem a intenção de divertir os nossos leitores que, sempre acabam tirando algum ensinamento para suas vidas.
Leia, Reflita, Comente!

SEM DISTINÇÃO
por Alessandra Valle
O plantão começou tranquilo naquele dia.
Os policiais trabalhavam nas investigações em andamento na “Desaparecidos”.
Uma mulher, muito tímida, entrou e se sentou sem exigir atendimento, aparentava estar triste.
Assim que oferecemos atendimento ela se dirigiu ao setor do plantão e abriu a bolsa para pegar algo.
— Meu filho está sumido há cinco dias. Aqui está a identidade dele — mostrou tirando o documento da bolsa.
Antes mesmo que fizéssemos as consultas aos bancos de dados policiais em nome do desaparecido, sua mãe começou a chorar e nos fez uma pergunta:
— Vocês procuram por mortos também?
Ao respondermos afirmativamente a angustiada desabafou.
— Meu filho “era do movimento” e já esteve preso.
As consultas confirmaram que seu filho possuía várias anotações criminais e teria sido preso em flagrante delito por tráfico de drogas, mas também demonstrava que a ele foi concedida liberdade condicional, recentemente.
Ao ser questionada a respeito das circunstâncias do desaparecimento, a mulher mudou de assunto, repetindo as descrições das diversas tatuagens que havia no corpo do filho desaparecido.
Anotamos minuciosamente as descrições informadas, pois em casos de homicídio e ocultação de cadáver é necessário cruzar dados, características físicas dos desaparecidos com os cadáveres localizados e removidos para o Instituto Médico Legal.
Diante de nós, havia uma mulher aflita, mãe sofredora, pois tentara de tudo para convencer o filho a não seguir cometendo crimes, mas de nada adiantou.
Agora, sua dor estava potencializada, pois, não houve despedida, o “tribunal do tráfico”, impiedosamente, tirou a vida de seu filho.
Em alguns casos, encontramos corpos carbonizados, outros esquartejados ou macerados em ações criminais atribuídas ao crime organizado.
— A polícia procura os desaparecidos criminosos? — perguntou a mãe, agarrada à identidade do filho, única coisa que lhe restou como lembrança.
— Senhora, se acalme. A polícia não faz distinção nenhuma. É seu filho quem está desaparecido e é nosso dever procurá-lo — disse buscando tranquilizá-la.
Com mais confiança no trabalho da polícia civil, a comunicante declarou detalhes do que soube a respeito do desaparecimento de seu filho e inclusive apontou a possível autoria do delito.
Em um momento angustiante em que não se tem qualquer notícia do familiar, nós, policiais da delegacia especializada em desaparecimento de pessoas, não fazemos distinção entre as vítimas.
As diligências investigativas e a atenção dada às famílias dos desaparecidos são as mesmas em qualquer caso.
— Eu só quero o corpo do meu filho para enterrar — encerrou aquela mãe, com lágrimas nos olhos.
A investigação prosseguiu com a instauração de inquérito policial para apurar as circunstâncias e a autoria do homicídio com ocultação de cadáver do rapaz.
A verdade é que nenhum plantão é comum.
DE ANJOS E FADAS
por Carlos Palmito
IG: @c.palmito
CAPÍTULO 2 — O GUARDIÃO DE FADAS
Acordou na manhã seguinte, estava na cama, pensou ter sido um sonho, mas as dores do corpo diziam-lhe que não, contudo, ela estava na sua própria cama, vestida com um pijama e debaixo das mantas.
Olhou em volta… perto da janela, sentado numa cadeira que costumava estar na sala encontrava-se um homem, estranhamente, um homem que Amy todas as noites via, alguém que ela amava em silêncio, alguém a quem nunca conseguiu dizer uma palavra, nunca soube porquê, medo talvez… contudo, amava-o em segredo, era por ele que todas as noites ela entrava naquele bar. Tentou levantar-se.
— Não, ainda estás fraca, deixa-te ficar mais um pouco, dorme… ficarei aqui — fechou de novo os olhos… não sabia como, mas pressentia que ao acordar o seu anjo ainda estaria ali!
Adormeceu, o estranho que ela amava; o anjo da noite ficou junto da janela, tal como lá tinha estado a noite inteira.
Admirava o rosto sereno de Amy, enquanto ela repousava, via a sua respiração pausada, e recordava, revivia ainda tudo da noite.
Todos os dias a contemplava, amava-a na solidão do que a sua vida era, contudo, nessa noite, algo mais lhe despertou a atenção… duas pessoas noutra ponta que não deixavam de olhar para Amy.
Ela abandonou o bar, um deles saiu quase no mesmo instante, o outro, um minuto depois.
O anjo, deu mais cinco minutos, e penetrou ele também na penumbra da noite.
Teve que procurar o caminho que ela fazia, e encontrá-la, sabia que os estranhos não tinham boa coisa em mente, sabia onde era a casa dela, uma vez durante o dia ao passar por lá tinha-a visto sair, a primeira vez que a vislumbrou à luz do sol, fora do ambiente do bar, fora do fumo e álcool…
“Ainda és mais bela iluminada pelo sol, do que pelos néones notívagos da cidade.” — pensou, mas nada lhe disse, nunca dizia… amava-a apenas em silêncio.
Após sair do mesmo bar, percorreu mentalmente o percurso que Amy poderia fazer até casa, vestiu o seu blusão negro a tapar-lhe a camisola cinza, e começou a andar nessa direção em passos rápidos.
Não lhe saía da cabeça a recordação dos dois estranhos, como olhavam para ela, o sorriso frio, o apontar, ele amava-a, estes não… nada de bom estava para vir mesmo.
Caminhou, passou por alguns táxis, “será que foste numa destas coisas para casa?” — sabia que não, já a tinha visto também de noite fora do bar, contudo jamais a tinha visto entrar em qualquer uma destas carruagens amarelas.
Transpôs várias ruas, contornou o jardim, julgou que ela não teria coragem de entrar nele pela noite, começou a chover; cortou por uma casa em cujo telhado dois gatos brigavam, um quase que lhe saltou em cima… ele pulou, desviou-se.
Inesperadamente ouviu um grito “É ela, eles apanharam-na” — centrou a atenção no vento para tentar perceber de onde viria… “jardim, pensei que não entrarias nele pela noite, sim, é mais perto para a tua casa, mas nunca achei que passasses nele pela calada da noite” — correu então em direção à residência das flores.
Ao entrar abrandou o passo, parou, tentando assim absorver mais um som, ouviu-o, uma risada alta, eles estavam perto… olhou em volta, um ramo de uma árvore “perfeito, eles pareciam fortes, um consigo derrubar, os dois duvido” — e começou a andar de forma lenta, queria correr, queria correr para sua amada, para quem amava desde o primeiro olhar… não podia, eles poderiam ouvi-lo e poderiam matá-la, nunca se perdoaria caso tal acontecesse.
Passou por entre árvores, ouviu a voz de um dos homens, e a gargalhada do outro, sentiu um ódio profundo invadir-lhe a mente…
Marchou um pouco mais, no local onde se encontrava via a silhueta de um deles, de costas… “perfeito, assim conto com a surpresa” — o riso do homem causava-lhe aversão…
Foi indo passo ante passo até estar bem próximo do desconhecido, levantou a sua arma e desferiu um golpe, um único golpe com toda a força dos seus braços, certeiro, quase letal, na nuca deste estranho… o ramo partiu-se em dois, e o homem tombou no rio de lama que as ruas deste jardim se tinham tornado.
O outro parou, Amy tombou inerte no chão, enquanto o estranho gritava com surpresa e raiva estampadas nos olhos, tentou fugir, mas o anjo não o permitiu, perseguiu-o, atirou toda a força do seu corpo na direção desse imundo agressor, estatelaram-se no chão, e só aí, pela primeira vez viu o objeto cortante do homem de olhos negros.
Hesitou, mas era tarde para recuar… o estranho tentou desferir um golpe com a sua faca, ele defendeu com o braço, lembrava-se ainda vagamente das aulas que tinha tido, lembrou-se de lhe terem dito que numa luta onde existam facas, se tivesse que se defender, utilizasse sempre o braço, nunca outra parte do corpo, e foi o que fez, defendeu com o braço esquerdo, usando o direito para desferir um golpe na nuca deste também.
Perante a violência do golpe, o senhor-desperdício-de-homem perdeu a faca, caiu por lama, e tentou fugir novamente. “Parece que o lobo sem dentes se torna medroso” — o anjo não lhe permitiu a fuga, atirou-o para rio de lama e descarregou nele toda a fúria contida.
— Como ousaram tocar numa fada? — berrou, espancando o homem, deixando-o num rio de lodo e sangue.
Levantou-se e voltou para trás, até Amy, “sempre te amei, sabes?” ergueu-a com os seus braços, sentiu uma pequena dor no esquerdo, que ignorou, teria que aguentar… cobriu a nudez dela com o blusão, perguntou-lhe para onde queria ir… ela respondeu casa e desmaiou nos seus braços.
Transportou-a, sentia dores cada vez mais agonizantes no braço, “deve ter sido profundo este golpe” — e caminhou, dois quarteirões apenas e lá estava o lar de uma fada, amparou-a apenas com um dos braços, enquanto que com o outro conseguiu encontrar as chaves, nos bolsos das calças dela, que ele tinha trazido.
Num bolso traseiro estava ainda a carteira, retirou-a.
Pela primeira vez presenciou o nome da sua amada, olhou para todas as campainhas do prédio, encontrou numa esse nome… “segundo andar” — subiu as escadas, abriu a porta… um hall de entrada, algumas rosas-brancas; como ele sempre imaginara que seria a casa de uma fada… caminhou em busca do quarto, queria que ela repousasse, queria providenciar-lhe conforto numa noite que se tinha apresentado dura.
Encontrou-o, levou-a até lá e deitou-a na cama enquanto olhava em volta a tentar perceber onde seria a casa de banho, “não a posso deitar assim…” — queria dar-lhe banho, limpar da sua pele todos os vestígios da noite, todos os vestígios dos senhores aranhas.
Regressou ao hall, ao observar em volta apercebeu-se de uma porta semiaberta, “é ali” entrou, ligou a água quente com que começou a encher a banheira, despiu a camisola, ficando em tronco nu.
Lavou o golpe do braço “está pior que pensei!” — enquanto a banheira ia enchendo… não podia meter espuma, faria mal aos golpes da fada.
Numa das prateleiras estava gaze, na outra, álcool, desinfetou o braço que enfaixou com a ligadura… nesse momento a banheira estava praticamente cheia, desligou a água e foi até ao quarto.
Pegou naquela que sempre amou, levou-a docemente em direção ao banho para a limpar da lama e baba de aranha que ela tinha na pele.
Descalçou-lhe os sapatos, retirou-lhe os restos mortais da roupa, pousou-a na banheira, com a esponja foi purificando todas as partes do corpo da sua amada, meiga e carinhosamente, contemplando-lhe a nudez do corpo, amando-a como amava, amando mais ainda “és linda minha fada” — uma lágrima brotou-lhe do olhar…
Ligou o chuveiro, água morna, passou com ele sobre a cabeça daquela fada, limpando-a assim, lavando toda a pele, que ia perdendo desse modo a lama e o odor de estranhos, tornando-se clara, enquanto o lodo escorria pelo ralo.
Sentiu-se envergonhado ao contemplar a beleza nua da sua amada, mas nada podia fazer, tinha que cuidar dela…
Retirou-a de lá, limpou-a, tendo extremo cuidado nos golpes que ela tinha nas pernas, e um entra o peito e o abdómen… desinfetou-os, aplicou gaze na totalidade destas feridas, sabendo na perfeição que ela tinha uma bem fundo, cravada como veneno de aranha, na alma, sabendo que esta era a que maior dificuldade iria ter em cicatrizar.
Transportou-a nua, de volta para o quarto… sob a almofada encontrou um pijama, vestiu-a delicadamente, com cuidado, devido aos golpes, não a pretendia magoar.
Abriu a cama, deitou-a… beijou-lhe a testa, pela primeira vez os seus lábios tiveram contacto com a pele da sua amada, e deixou-a repousar.
Perscrutou a divisão em busca de algo para se sentar, não podia sair, tinha que cuidar dela.
Na sala encontrou uma cadeira que trouxe, colocou-a perto da janela, abriu-a um pouco, deixando desse modo o ar da noite mantê-lo acordado… queria estar desperto quando ela acordasse.
Levantou-se uma vez mais, precisava de algo para beber, qualquer coisa fresca, na cozinha encontrou uma garrafa de água, trouxe-a para seu ponto do vigia.
A dor no braço, apesar de desinfetado, ainda era lacerante, mas era bom que assim fosse, a dor ajudava a que ele não adormecesse.
Desligou a luz, deixando que o quarto fosse iluminado apenas por um candeeiro que se encontrava no exterior, conferindo nesse ato um ar místico à divisão… afinal era o quarto de uma fada, era o quarto da sua amada, tinha que ser místico como as florestas num conto de fadas.
Recostou-se na sua cadeira, ela seria o seu trono esta noite… a fragrância de rosas e outras flores inundavam-lhe os sentidos.
Ouviu-a gemer, olhou com atenção, nada de preocupante, apenas um sonho… deixou-a sonhar, ela precisava.
Pouco depois, novo gemido, mas este de medo, levantou-se da cadeira e foi para bem perto dela “não, não é um sonho, é um pesadelo” — segurou-lhe a mão e sussurrou no seu ouvido:
— Calma, meu amor, eu estou aqui, não partirei, nenhum vampiro da noite morderá o teu pescoço hoje, nem nunca… jamais! Estou aqui.
Sorriu, nunca se imaginou a pronunciar palavras ternas, em tom de confidência à pessoa que amava… sempre pensou estar à distância, amar e nunca ouvir, amar e nunca conseguir sequer se aproximar.
Ela acalmou, ele voltou para o seu trono, a cadeira junto à janela.
O ar exterior tornou-se mais frio e entrava por ela, um arrepio percorreu-lhe a pele, todos os seus poros levantaram-se em nome do pai vento, não podia ficar assim, em tronco nu.
Buscou a sua camisola, embora manchada de sangue em algumas partes, teria que servir, teria que o proteger do pai vento e da mãe frio, não podia adoecer, não se podia constipar, não agora.
E eis que um novo gemido ressoou na calmaria notívaga, a respiração de Amy aumentou o compasso, ele conhecia o sintoma; um pesadelo, mais um, subitamente um grito pronunciado pela garganta de Amy.
— Não, não… parem, não…
Sentiu-a a agitar-se, a dar voltas na cama, levantou-se de imediato, segurou-a… sentiu as unhas dela cravarem-se no seu rosto e ombros.
— Não, não, não, soltem-me… anjo… — sentiu sangue na cara… as unhas de fada são perigosas!
— Estou aqui, minha fada, estou aqui, calma… disse-te, nenhum vampiro e muito menos pequenas aranhas… te tocarão, enquanto eu estiver jamais te tocarão.
De novo a calma, sentiu-lhe as mãos a deixarem de resistir… os olhos dela reviravam por debaixo das pálpebras, ainda se encontrava lá, perdida naquele jardim que fazia lembrar uma pequena floresta.
Puxou-a para si e abraçou-a, num abraço quente e protetor, o aroma da pele dele a invadiu-lhe o olfato, sentiu-se embriagar por ele.
— Calma… — sussurrou, os olhos acalmaram, pararam, a respiração abrandou até ao habitual compasso torácico, recostou-a e puxou-lhe os cobertores para cima.
Regressou à cadeira, mirando o exterior… uma imensa lua cheia e um candeeiro eram tudo o que iluminava esta rua fantasmagórica “os fantasmas da noite percorrem estes becos lamacentos” — sentou-se e fixou o olhar em Amy… ficou ali… à espera de mais um grito na noite, mais um gemido… que não tardou a surgir.
— NÃO… não quero, não quero, soltem-me, não sou uma mosca, não vêm que não sou uma mosca? — levantou-se de novo… a dor no braço tinha finalmente acalmado… a dor na alma dela parecia agravar-se a cada segundo no sonho.
Viu-a contorcer-se violentamente, atacando o ar, agredindo-se a si… segurou-lhe os braços, não podia permitir que ela se magoasse.
Beijou-lhe o rosto, a vontade era beijar os lábios de veludo dela, mas contentou-se com a face, puxou-a para si, abraçou-a, foi retribuído.
— Obrigado, príncipe da noite, obrigado anjo noturno… obrigado…
Embalou-a nos seus braços, acalentou-a em si, um novo beijo, bem perto dos lábios, era difícil resistir ao desejo… sussurrou-lhe então ao ouvido:
— Chama-me, chama o teu príncipe da noite, o anjo noturno, chama-me se mais homens te perseguirem nos recantos dos sonhos, não será aí que se esconderão de. Chama-me, libertarei a alma, e ela irá lá, proteger-te, no mundo dos sonhos… chama bem alto, grita por mim.
As palavras nutriram o efeito desejado, ela acalmou uma outra vez… ele ficou ainda a balança-la por alguns minutos, acariciando-lhe a face, o rosto belo e puro, que ele tanto amava, desde o primeiro dia que amava todos os contornos dela, desde o primeiro dia que a amava.
Deixou-a a descansar no leito e voltou à cadeira… “Esta noite será neste trono que te protejo!” — esteve ainda na expectativa de mais gritos e lamentos, mas tal não sucedeu, passou então todo o resto da noite a contemplar a beleza da sua fada, os traços do seu rosto, agora sereno, enquanto ela dormia.
Em nada se comparava com o que ele viu quando ela tombou no pantanal do jardim, nada tinha que ver com os olhos assustados, nem a dor ou o medo, era agora sereno… ela mal se mexia, uma respiração pausada enquanto dormia, ele observava os contornos do seu peito a mexerem ao ritmo da respiração… amava-a em silêncio fazia tempo, contudo nunca tinha imaginado sequer estar no quarto dela, muito menos nesta situação… após a salvação da morte por duas moscas.
O dia começou a despertar, a lua há muito que tinha adormecido, e agora vinha aí o sol, ao longe ouvia-se um galo a cantar, bem mais perto o som do trânsito, as pessoas na sua rotina diária…
“Dariam pela falta dela se não a tivesse salvo?” os raios solares começaram a trespassar pela janela, um som chamou a atenção do anjo da noite, sentiu algo mexer-se, Amy… o pesadelo voltara, ia para se levantar, mas parou… não era o mesmo gemido da noite, viu-a levantar-se, ou antes, tentar…
Um sorriso percorreu-lhe o rosto, iluminada pela luz solar, era ainda mais bela, mais pura… ouviu-lhe o suspiro, viu-a olhar para si, olhos doces, mas não assustada… viu que ela não se assustou com a sua presença!
— Não, ainda estás fraca, deixa-te ficar mais um pouco, dorme… ficarei aqui. — ela adormeceu novamente.
Acordou então a segunda vez, olhou em volta de novo, estaria ainda ali o anjo? Encontrou-o, no seu local junto à janela a observá-la, com ar meigo e ternurento… amou a expressão dele… recordações faiscantes da noite vieram ao encontro da sua mente… como num choque térmico… manhã noite, calor frio, amor ódio, sentiu-se quase a desfalecer, levantou-se rapidamente para que tal não acontecesse.
Sentiu uma enorme dor na perna esquerda, e lembrou-se da faca do senhor-teia-de-aranha, passou pelo anjo.
— Preciso de um banho!
Ele nada disse, acenou apenas afirmativamente com a cabeça, ela não o conseguiu encarar diretamente nos olhos, sentia-se suja, sentia a saliva do senhor-teia-de-aranha nas suas pernas, sentia o hálito fétido do outro na pele, sentia-se podre.
Passou pelo anjo como se de vento se tratasse, caminhou em passo firme para a casa de banho onde se livrou do pijama, ligou a água quente para encher a banheira, olhou o rosto no espelho, o corpo.
Um carro passou no exato instante em que ela esmurrou a sua própria figura no espelho… a esmagou-a, estilhaçou-a.
A água continuou a correr, o anjo tinha-se levantado da sua poltrona, do seu trono e divagava agora de um lado para o outro, não tinha ouvido o espelho a quebrar-se, o carro impediu-o de tal.
Amy entrou na banheira, água bem quente, e começou a esfregar o seu corpo, a arranhá-lo, sentia nojo dela mesma, sentia nojo da sua pele ter sido tocada por vermes… quanto mais friccionava, quanto mais rasgava, mais repugnância sentia, até que parou.
— Não posso continuar a fazer isto! — olhou para o lado, um resto do espelho… a sua figura quebrada, tal como ela mesma se sentia… pegou-lhe, lacerando nesse ato um dos dedos.
Agarrou com uma maior robustez, sentiu o vidro a rasgar-lhe a pele na palma da mão, não se importava, nada mais interessava… sentia repulsa por ela própria, vergonha… ficou apenas a olhar o sangue a escorrer da mão para a água da banheira, água essa que já escorria pelos bordos da mesma inundando o chão da casa de banho… nojo… ódio… “pequena mosca corre corre pequena mosca” ouvia ela a voz rouca e dilacerante do senhor-teia-de aranha, o riso frio, gélido de Pedro…
Ódio, começou a sentir um ódio descomedido, incomensurável vergonha e um asco ainda maior… a água entrou nesse instante no quarto, na cozinha… a água da banheira… O anjo viu essa água, franziu o sobrolho.
Correu para a casa de banho, abriu a porta de rompante, viu Amy, a sua fada deitada na banheira, numa das mãos segurava um pedaço de vidro, um pedaço da sua vida estilhaçada, observou-a a encostar o vidro cortante a um dos pulsos, e assistiu ao sangue que começou a jorrar.
— Não, anjo, não, não vês o suja que estou, vai… parte, és o anjo da noite, não do dia… vai.
Contudo, ele não partiu, agarrou-lhe a mão que segurava o vidro assassino…
— Não Amy, não o faças.
— Estou nua, não olhes para mim, não olhes para meu corpo… estou podre, cheiro mal!
— Para… larga o vidro Amy.
— Larga-me, larga-me.
Mas não a largou, sentiu as unhas da mão livre de Amy cravarem-se no seu rosto, a segunda vez em menos de vinte e quatro horas, não ligou, obrigou-a a largar o vidro, puxou-a para si, olhando nos seus olhos:
— Não Amy, não podes, não permitirei que o faças.
Ela fechou os olhos, como que numa recusa às palavras, com vergonha de ele olhar para lá e abraçou-o o vidro caiu então pelo chão, estilhaçou-se em pequenos fragmentos.
Ele levantou-a da banheira, quase inerte… uma vez mais em menos de vinte e quatro horas…
— Estou suja anjo… estou suja. — sussurrava ela, mas já não se debatia.
— Não estás, garanto-te que não estás, eu protejo-te. — tapou-a com uma toalha, e levou-a de novo para o quarto, onde a deitou na cama.
Olhou em volta, precisava de um telefone. o pulso dela preocupava-o, além que sabia que ela necessitava de ser vista por especialistas.
Ele possuía alguns conhecimentos de primeiros socorros, mas achava-os poucos, ela poderia estar mais magoada que fisicamente aparentava, e depois existia ainda a tentativa de suicido com um pedaço de vidro, e se ela tentasse de novo e ele chegasse um minuto mais tarde?
Não encontrou nenhum no quarto, saiu para a sala, lá deveria existir um.
Na cama, Amy estava deitada, com uma única toalha a esconder a nudez do corpo, de olhos fechados e algumas lágrimas a percorrerem-lhe o rosto.
Existiam palavras na sua mente, “corre corre pequena mosca…” — o jardim, as árvores, todas estas imagens e palavras vinham como que numa avalanche de pensamentos, mas ela não se mexia, apenas estava ali, deitada, não tinha mais forças, ficava simplesmente a ver e ouvir com a memória…
Passos, passos a aproximaram-se.
— Não, vai embora, vai embora!
Os passos aproximaram-se até bem perto da cama.
— Sou eu Amy, o teu anjo noturno, sou eu, não parto, não partirei!
Abraçou-a, ajudou-a a vestir-se… tantas vezes que a tinha observado protegido pela escuridão no seu canto do bar, contudo jamais tinha imaginado estar com ela naquela situação “Como pode Deus permitir que façam uma coisa destas?”.
Vestiu-lhe calças, sempre a tinha visto com calças vestidas, e uma camisola de lã branca, “engraçado, foi com esta roupa que a vi entrar no bar a primeira vez”. deixou-a repousar no seu colo, acariciando-lhe a face e cabelos enquanto esperava.
Cinco minutos após, a campainha da porta arrancou-o do mundo de pensamentos onde se encontrava… Amy gritou… ele beijou-lhe a testa.
— Não tenhas medo, quem vem é ajuda.
Levantou-se da borda da cama onde estava sentado e foi abrir a porta, deixando entrar a enfermeira, ele tinha feito questão durante o telefonema para que fosse enfermeira, para não vir ninguém do sexo masculino, tinha medo da reação de Amy ao ver outro homem assim tão subitamente, entrar na sua casa e a levar.
O anjo noturno ajudou Amy a levantar-se, a doce Amy de pele clara, deixou-a apoiar-se nele e na enfermeira, e caminharam escadas abaixo em direção à ambulância.
O sol aquecia timidamente a manhã, Amy parou ao senti-lo tocar-lhe o rosto, estagnou apenas um segundo, para depois continuar a deixar-se guiar por ambos.
Um vento gelado percorria a rua, os becos… a cidade das aranhas e moscas.
Entrou na ambulância, sempre com o anjo noturno a apoia-la, sentaram-se; ele segurou-lhe a mão enquanto a ambulância percorria as estradas, desertas de noite, movimentadas de dia… em direção ao hospital local.
A viagem pareceu eterna, cada segundo era um milénio, desespero na mente do anjo, medo na mente de Amy… “… para a teia que a aranha preparou para ti”.
Uma travagem, a ambulância a parar… portas de trás são abertas.
Amy sai, apoiada pela enfermeira, o anjo da noite sai atrás dela, olha calmamente para o céu, sol e frio, permite que a aragem o desperte, o envolva, deixa-a passar por ele, sempre adorou o ar da manhã, o arrepio leve que o vento matinal provocava na sua pele.
Apoiou então Amy pelo braço, e juntos entraram no hospital.
Foram conduzidos até uma sala onde uma médica esperava.
No ar pairava um odor a éter, a sala era acolhedora, uma maca a um canto, uma jarra de flores sobre uma mesa no outro, e três cadeiras confortáveis.
A médica, pessoa de meia-idade, vestida de branco, apontou uma das cadeiras para que Amy se sentasse, conduzida para lá pela enfermeira e pelo anjo.
Em seguida, a médica chamou-o de parte, uma pequena conversa longe dos ouvidos de Amy, quase sussurrada, a médica voltou e ele saiu em direção a uma outra sala.
Nos corredores o odor a éter era demasiado violento, quase que causando náuseas, ele caminhou, virou à direita no corredor e entrou na primeira sala do lado esquerdo, lá, dois policias aguardavam-no, um, um homem e o outro uma mulher, a porta fechou-se quando ele entrou.
Na sala da médica, Amy era cuidadosamente observada, as feridas e golpes examinados, os arranhões que ela própria causou na banheira cuidados, e o golpe no pulso tratado.
Depois foi a vez da observação clínica, afinal Amy tinha sido vítima de tentativa de violação, teria que ser observada.
Ela deixava-se levar, não resistia a nada, não falava, nem respondia às perguntas que a médica ia colocando, apática, alheia a tudo, com o olhar fixo nas rosas-brancas ao fundo da sala… vislumbrando os raios solares entrarem e dando a elas um tom místico, como se as rosas estivessem num conto de fadas talvez!
Continua...
FANTASMAS NO APARTAMENTO
por Luiz Primati
IG: @luizprimati
No capítulo anterior, Daniel estava assustado com os alimentos que sumiam de seu apartamento durante a sua jornada de trabalho. Em casa, somente 2 doninhas. Várias câmeras tentaram filmar o intruso(a) sem sucesso. Como Daniel resolverá essa questão? Descubra agora...
CAPÍTULO 2 — FANTASMA CAPTURADO
Na fábrica Daniel comentou com um amigo sobre o ocorrido.
— A mulher surgiu do nada, Artur.
— Isso não é possível. Ela deve ter entrado pela porta da cozinha. Você tem câmera lá? — questionou Artur.
— Filmando a porta, não.
— Pode ter certeza de que ela tem a chave. Troque a fechadura — sugeriu Artur.
— E como ela conseguiu a cópia da chave? — perguntava Daniel confuso.
— Ela pode ter morado antes de você no apartamento por isso tem a chave. Ou então possui uma chave mixa. — finalizou Artur.
— Tomara que ela tenha a cópia, pois hoje de noite eu troco a fechadura e ela não entra mais.
— Faça isso meu amigo. Vou nessa! — Artur apertou a mão de Daniel e foi. Seu turno começava em 5 minutos. Daniel também precisava ir.
A noite foi mais longa que de costume. Daniel chegou às 21:00h com o chaveiro. Ele levou quase uma hora para trocar a fechadura e colocou uma tranca por dentro, daquelas com corrente. Nesse tempo que o chaveiro trabalhava, Daniel viu novamente as filmagens e a mulher reapareceu, mais ou menos por volta das 10 e pouco. E novamente as câmeras não pegaram de onde ela surgira. E teve uma novidade: a mulher tomou banho. Não, não. Daniel não tinha câmeras no banheiro, no entanto, pode ouvir o barulho do chuveiro sendo aberto e desligado após uns 15 minutos. A mulher passou pela sala, enrolada na toalha e entrou no quarto de Daniel. Se olhou no espelho e depois sumiu em direção da cozinha.
— São 2.500 ienes — cobrou o chaveiro. Daniel pagou sem reclamar.
Mais assustado e enojado estava nessa noite. Agora descobrira que ela usava seu sabonete, provavelmente seu shampoo e sua toalha. Mas que mulher petulante! — Falava em seus pensamentos. “Mas a partir de amanhã isso vai acabar. Essa mulher não entra mais no meu apartamento.”
Preparou as câmeras novamente e mudou a da sala para focalizar a porta da cozinha. Daniel queria ver se tinha conseguido realmente se livrar daquela intrusa.
Logo que retornou, fez suas coisas correndo e foi olhar as câmeras. “Não deve ter mais nada” — Pensava Daniel. Avançou pelas 10:15h, 10:30h, 10:40h e nada. Tinha se livrado dela. Mas as 10:45h lá estava a mulher novamente na geladeira, tomando o seu suco e comendo a sua comida. Recorreu à câmera que filmou a porta da cozinha o dia todo. Para o seu espanto a porta não foi aberta, porém, um vulto passou diante da câmera da cozinha no horário das 10:45h. Todos os seus pelos se arrepiaram novamente. Era apavorante saber que um fantasma habitava por ali. Mais uma noite sem sono. Tinha receio em pregar o olho e o fantasma aparecer.
O dia seguinte foi difícil na fábrica. Com o sono atrasado seus reflexos ficaram lentos. Quase se machucou numa das máquinas. O fato de seu apartamento estar assombrado o assustava.
— Coloca laxante no suco — disse Artur para Daniel.
— Laxante? Como assim? Fantasma vai ter alguma reação a laxante? — questionou Daniel.
— Pensa comigo. Fantasma precisa comer?
— Não!
— Fantasma consegue abrir a geladeira?
— Até onde eu saiba, não.
— Esse fantasma era transparente?
— Não.
— Então meu amigo, você tem uma pessoa de carne e osso no seu apartamento.
— Impossível. Nas filmagens a mulher saiu pela cozinha atravessando paredes.
— Você viu? Tá no vídeo? — brincou Artur.
— Não vi não. Mas ela sumiu em direção à cozinha. A câmera que filmava a porta da cozinha não registrou sua saída. A porta não foi aberta uma única vez.
— Eu aposto que esse fantasma ainda está lá na sua casa.
Daniel ficou pensativo, preocupado.
— E faça mais uma coisa, após colocar laxante no suco, esconda todos os rolos de papel higiênico. Vamos ver se fantasma também precisa ir ao banheiro.
Era isso que iria fazer. Preparar uma armadilha para a intrusa. Ao descer do ônibus parou na farmácia e comprou o laxante e uma caixa nova de suco de abacaxi, o preferido pelo fantasma. De volta ao lar, fez todas as tarefas rotineiras. Assistiu às filmagens e a mulher continuava tomando seu suco e comendo sua comida. Resolveu batizar o suco com o laxante conforme Artur tinha sugerido. Essa seria a prova definitiva.
Dormiu dessa vez, vencido pelo cansaço. Sabendo ser uma pessoa e não um fantasma, Daniel se sentia mais tranquilo. Afinal, com uma mulher ele poderia lutar se fosse necessário.
De volta à rotina… 5:40h, acordar… tomar banho, alimentar as doninhas, redes sociais, mochila, ônibus. O retorno para o apartamento as 21:00h. Era a hora da verdade. Entrou e fez as tarefas de rotina. Alimentou as doninhas, tirou um frango da geladeira para descongelar, e iria tomar um banho. Após o banho faria sua mistura para comer com o arroz e somente depois de tudo isso olharia as filmagens. Só que não foi preciso esperar. Ao entrar no banheiro o cheiro forte de diarreia invadiu suas narinas. O fedor era muito forte. No chão uma toalha toda cagada. A privada toda suja como se alguém jogasse um balde de merda a um metro de altura e respingasse para todo lado.
Daniel precisou ter estômago forte para limpar toda aquela sujeira. Usou bastante desinfetante e água sanitária. Precisava combater aquele cheiro putrefato com produtos que pudessem garantir uma desinfecção total. Aguentou o cheiro forte dos produtos utilizando uma máscara hospitalar. Levou quase 40 minutos para deixar tudo em ordem. Só depois tomou seu banho e voltou para a cozinha. Mas ele perdeu a fome após presenciar a cena. Precisava ver as filmagens.
O roteiro parecia ser o mesmo. Mesmo horário, mesmas ações. Se lembrou do filme “O Dia da Marmota” onde o personagem fica preso no tempo. Se não assistiram, assistam que vale a pena. Voltando para a mulher misteriosa, o roteiro apresentava algumas cenas inéditas. Depois de 2 horas que a mulher tomou o suco e comeu, o vídeo captou ela correndo em direção ao banheiro. Mais uma vez Daniel não colocou uma câmera lá dentro, apenas filmou a entrada do banheiro. Sons de gases sendo expurgados daquela mulher podiam ser ouvidos na gravação. O enjoo veio na garganta ao imaginar o estrago que ela fazia em seu banheiro. Conteve a vontade de vomitar e pulou a cena. Artur tinha razão. Nosso fantasma era uma mulher de carne e osso.
A noite foi de cautela. Daniel dormiu com a porta do quarto trancada. Essa mulher poderia querer se vingar dele. Tudo poderia acontecer. Deitou as 23:30h. As 5:40h seu iPhone despertaria. As 2:25h Daniel foi desperto e não era pelo seu iPhone. Foi a descarga do banheiro que ouviu. Imediatamente seus olhos estalaram e o coração disparou. A mulher estava dentro de seu apartamento. E usando o banheiro. Deveria ser reação ao laxante. Só que dessa vez ele tinha deixado rolos de papel higiênico. Petrificado pela sensação de impotência, resolveu não sair do quarto até chegar a hora de ir trabalhar. Ao levantar pegou uma faca na cozinha. Fez as tarefas, sempre olhando em torno. Não conseguia achar onde a mulher se escondia. Precisava por um fim nisso.
Teve uma ideia. Enviou uma mensagem para Artur dizendo que não iria trabalhar. Estava doente e precisava que avisasse seu chefe. Artur entendeu o recado. Daniel se preparou para ir trabalhar como de costume. Depois de tudo pronto saiu para o trabalho. Ao invés de caminhar até o ponto de ônibus, foi até seu carro e por lá ficou. Ajustou o despertador de seu iPhone para 10:00h da manhã. Dormiu ao banco de trás.
Quando o celular despertou, Daniel se preparou para pegar a mulher. Munido de uma faca, das bem grandes, foi até seu apartamento e ficou do lado de fora, esperando por algum som que denunciasse a presença da mulher misteriosa. Ficou à espreitada por cerca de 20 minutos até que ouviu passos. A mulher parecia estar indo em direção a geladeira. Sem poder evitar, o coração de Daniel atingiu 170 batimentos. Era muita adrenalina. Respirou fundo para diminuir os batimentos. Não adiantou. Empunhou sua faca e abriu a porta devagar para que a mulher não o ouvisse. Devagar, pé ante pé foi até a cozinha e lá estava a mulher bebendo o suco na caixa.
— Aiiiiiiii! — Gritou a mulher.
— Quem é você? Está me roubando a meses. Merece ser esfaqueada — gritou Daniel descontrolado, ameaçando a mulher.
— Por favor, não me machuque — implorava a mulher esticando um dos braços em direção de Daniel.
Sua expressão era de puro terror. Usava um vestido velho, bem desgastado. Um chinelo, uma blusinha de manga longa por cima de uma camiseta que um dia fora branca. Era uma japonesa de seus 30 e poucos anos. Daniel entendia o japonês fluentemente. Aqui estou usando a tecla SAP, ok?
— Vou chamar a polícia. Você não pode ficar me assustando dessa maneira. Onde vive? Como entra aqui? — Daniel tinha muitas perguntas.
— Calma senhor. Eu vou explicar. Não quero fazer mal algum.
— Estou esperando. Fala! — Gritava Daniel ainda com o coração disparado, agora mais seguro em ver que a mulher era frágil e ele possuía uma arma.
— Eu… eu… moro aqui mesmo. Não tenho casa e nem tenho ninguém. — Balbuciava a mulher.
— Como assim, mora aqui mesmo? Como pode ser? Qual seu nome? Onde está sua família?
— Vou explicar se o senhor deixar… Chamo-me Naomi. Não tenho família. Fui abandonada quando tinha 2 meses de vida… vivia em lares adotivos até que fugi.
— Quero saber onde mora agora. O que quis dizer quando disse que mora aqui mesmo? Me mostre.
— Está bem. Está bem. Vou mostrar — Naomi estava trêmula. Balbuciava as palavras que saiam vibrando de sua boca.
Daniel apontava a faca para Naomi. Ela pedia calma. Precisava sair da cozinha para lhe mostrar. Ele consentiu. Ao entrar na cozinha, ao lado direito, antes de ir para a área onde fica a geladeira, existe um pequeno armário. Ali Daniel deixou algumas bugigangas quando se mudou e nunca mais se aproximou. Naomi o guiou até dentro dele. Ela morava ali. O cheiro era ruim. Uma cama improvisada e nada mais. Naomi dormia ali quando Daniel estava no apartamento e quando ele ia trabalhar, saía do armário e comia sua comida, tomava banho e até assistia TV. Fazia quase um ano que habitava as profundezas do armário.
— E quando você se instalou no armário? Como entrou? — perguntava Daniel sem abaixar a faca.
— Eu conto, senhor, mas poderia abaixar essa faca? Não vou lhe fazer mal — implorou Naomi.
Daniel abaixou sua arma, mas não relaxou. Estava de prontidão e avisou que se ela tentasse algo não hesitaria em usá-la.
— Logo que o senhor se mudou, após uma semana mais ou menos, eu estava próxima à porta de entrada do prédio. Vi quando o senhor saiu para colocar o lixo na rua. Aproveitei e entrei antes que a porta se fechasse. Corri para o andar de cima e vi a porta da sua cozinha aberta. Entrei e me escondi no armário. Tinha a intenção de ficar apenas uma noite e quando vi, já estava vivendo por quase um ano.
— Comovente a sua história, mas não tenho como sustentar uma pessoa como você. O meu dinheiro é ganho com muito suor. Não vou deixar você se aproveitar de mim — falou firme.
— Eu sei, eu sei. Me deixe ir, e prometo nunca mais voltar — implorou Naomi.
Daniel pensou sobre o assunto.
— Eu imploro. Por favor, me deixe ir. Se chamar a polícia vou para um lugar pior que esse seu armário.
A mulher ainda desprezava o armário dele — pensou.
— OK! Pegue as suas coisas e caia fora. Não quero te ver mais por aqui.
— Obrigado senhor, muito obrigado — Naomi agradeceu e se dirigiu para a porta de saída.
— Hei, pegue suas coisas antes.
— Não tenho nada senhor. Somente a roupa do corpo.
Daniel esperou que Naomi saísse. Sentiu alívio imediato quando ela alcançou a rua. Pensou em arrumar o armário jogando tudo fora. Nada do que tinha ali ele precisou por quase um ano.
Um remorso, uma sensação de estar fazendo algo errado tomou conta de Daniel. Chutou aquela pobre mulher para fora, sem piedade. Sabia um jeito de ajudá-la. Correu até a rua. Avistou Naomi caminhando lentamente. Chamou por ela que, assustada, começou a caminhar depressa, com medo de Daniel.
— Eu não roubei nada…
— Não é isso. Espere. Posso ajudá-la! — Naomi parou para escutar. — Espere aqui que vou pegar meu carro.
Daniel levou a mulher até um albergue. Ali ela teria um teto, um cobertor para aquecê-la durante a noite e sopa nutritiva para mantê-la com saúde. Ela agradeceu. Daniel voltou à sua vida normal. Quando soube precisarem de uma ajudante geral na fábrica, voltou lá e falou da vaga. Seu amigo Artur tinha influência nas contratações e Naomi pode ganhar seu próprio dinheiro. Com o passar do tempo Naomi conseguiu alugar um apartamento e ter uma vida digna. Daniel se sentiu útil ajudando Naomi. Até pegavam o mesmo ônibus para a fábrica.
Ninguém merece viver num armário. Nem o pior dos nossos inimigos. Eu poderia ter dado um fim trágico a essa história, matando Naomi. O final feliz é o que todos nós merecemos. Essa história aconteceu de verdade no Japão. A notícia apenas dizia: “Um homem, desconfiado que alguém roubava sua comida, colocou uma filmadora e pegou a mulher ladra. Ela vivia há quase um ano em um armário. Aconteceu no Japão.” Somente isso. O resto foi a minha imaginação que produziu.
SONO PROFUNDO
por Sidnei Capella
IG: @capsidnei
CAPÍTULO I — INTOLERÂNCIA
Osvaldo é um homem compromissado com o seu trabalho e com a família. Tem ao seu lado, Lídia, uma esposa dedicada para o bem-estar familiar, mulher apaixonada pelo marido e os filhos, Amanda de dezesseis anos e Joel de quinze anos.
Naquela manhã de sábado, Osvaldo acordou com uma sensação estranha, levantou-se da cama e caminhou até o banheiro onde pretendia fazer higiene pessoal e depois tomaria café com a família.
Osvaldo combinou com a esposa e os filhos que depois do café passariam o dia no clube, uma atividade familiar de entretenimento frequente.
Osvaldo ao entrar no banheiro sentiu a impressão que estava sendo observado e vê um vulto passar por ele.
─ Lídia, Lídia é você que está aí? ─ assustado, Osvaldo perguntou à esposa.
Imediatamente Lídia subiu as escadas correndo, imaginando que Osvaldo tinha sofrido algum acidente e perguntou:
─ Osvaldo, meu amor, o que aconteceu?
─ Lídia um vulto passou por mim, não foi você?
─ Eu não! Estava preparando o café da manhã ─ respondeu Lígia para o marido.
Osvaldo, parado, fixa os olhos na esposa, com uma fisionomia extremamente assustada.
“Tive a sensação que minha mãe estava por perto. Ela já morreu! Não acredito em espíritos!” ─ pensou Osvaldo.
Lídia entende o que havia acontecido com Osvaldo, que está com a cor de pele pálida, sem falar sequer uma palavra, pensativo, sentado na tampa do vaso sanitário e com a respiração ofegante.
─ Lídia, tive a impressão que o vulto era minha mãe! Estava angustiado, mas depois que o vulto passou, senti uma paz no coração!
─ Osvaldo, já falei que somos protegidos pelos anjos de Deus; pode ser que a minha querida sogra esteja por perto nos protegendo de todo mal, pois era uma mulher de coração bom, foi uma pessoa muito boa entre nós.
─ Pare com esta conversa mulher, quem morre não volta mais! Você acredita muito no que não está visível aos nossos olhos. Identifico-me com São Tomé, só acredito vendo!
Osvaldo é uma pessoa que não segue nenhuma religião, naquela manhã ficou abalado com o que aconteceu, pois, nunca havia presenciado nada igual, mesmo assim, afirma para Lídia que só crê no que é material e palpável.
“O que será que estão querendo dizer para Osvaldo? O que aconteceu com ele não é normal. Os amigos espirituais estão por perto, estão querendo dizer algo!” ─ pensou Lídia, olhando para o marido.
Lídia frequenta sessões espíritas em um centro próximo da residência, é uma mulher religiosa e com muita fé; vive orando, lendo livros, fazendo evangelhos no lar, tudo para o bem-estar familiar.
É uma pessoa de profundo conhecimento e pesquisadora de assuntos relacionados à espiritualidade e mediunidade, além de acompanhar com os filhos palestras de ensino bíblico uma vez por semana.
─ Osvaldo meu amor, melhor você orar.
─ Minha pequena, faço orações todos os dias, não vou ficar o dia inteiro, dentro de uma igreja rezando!
Lídia, respeitando a opinião e as escolhas de Osvaldo, ficou quieta e foi para a cozinha terminar o café. Enquanto ainda no banheiro, Osvaldo, agora tranquilo, terminou o banho, e desceu para tomar café com a esposa e os filhos.
A dedicada esposa de Osvaldo preparou um café completo para a família com omelete, tapioca, pão de queijo e bolo de cenoura. Naquela manhã, Lídia fez tudo que o marido e os filhos gostavam.
─ Mulher o café está maravilhoso, eu amo você! ─ falou Osvaldo para esposa.
─ Podemos namorar à noite no nosso quarto, o que você acha Osvaldo? ─ perguntou Lídia, enquanto os filhos não estavam à mesa para tomar o café.
─ Podemos sim, Lídia. Quero, por toda minha vida, fazer amor com você, só que vou fechar bem a porta para não entrar nenhum vulto ─ falou Osvaldo, fazendo juras de amor e, ao mesmo tempo, brincando e, finalizando a conversa com bom humor.
Osvaldo se aproximou de Lídia, acariciou o seu pescoço, encostaram levemente os lábios e, aos poucos, o casal desfrutou de um beijo apaixonado. O beijo durou até a chegada dos filhos Joel e Amanda. A família delicia-se de todas as guloseimas expostas na mesa.
Ao terminar o café, Osvaldo pediu para os filhos, ajudarem a mãe arrumar a louça do café, e foi ao posto de gasolina abastecer o carro e calibrar os pneus. Em uma via totalmente sinalizada, voltando para casa, Osvaldo ao atravessar com o seu carro, o cruzamento, obedecendo ao farol que estava com o sinal verde, foi surpreendido com uma forte pancada no carro por outro veículo que trafegava em alta velocidade, avançando o sinal vermelho do farol.
O carro de Osvaldo foi atingido fortemente e ele ficou preso nas ferragens. Rapidamente chegou o resgate.
Carros de polícia e de bombeiro estacionaram no local do acidente e, começaram a fazer o trabalho de resgate às vítimas envolvidas. Imediatamente priorizaram o atendimento ao Osvaldo, pois era a vítima mais grave do acidente. Os bombeiros tiveram dificuldades, pois, o incrédulo Osvaldo, estava preso nas ferragens.
Enquanto os Bombeiros executavam o trabalho de serrarem as ferragens do carro, Osvaldo, entre a vida e a morte, escutou vozes vindo de todos os lados e ficou a observar corpos flutuantes de luzes nas proximidades e perguntou para os bombeiros, com a voz cansada:
─ O que aconteceu, onde estou? Que luzes são estas? Quero falar com a minha esposa, onde estão os meus filhos?
O Bombeiro pediu calma para o vitimado e alucinado, Osvaldo.
─ Mãe, Mãe, Mãe! A senhora veio me buscar? ─ Osvaldo se põe a falar, e lentamente foi perdendo as forças até desmaiar.
Osvaldo, ao acordar, notou que à sua volta, pessoas trafegavam com aventais brancos, era um ambiente harmonioso, com várias macas e todas ocupadas por pacientes.
─ Senhor, qual o nome deste hospital? ─ perguntou Osvaldo, ainda cansado e tremulo, para uma pessoa que passava ao lado de sua maca.
─ Osvaldo, eu sou um amigo espiritual e estou aqui para ajudar. Você sofreu um acidente e está sobe tratamento ─ respondeu o amigo espiritual.
Osvaldo, não entendendo nada, se pôs a gritar com o amigo espiritual, querendo saber qual era o nome do hospital onde ele se encontrava.
─ Osvaldo, calma, logo terá todas as respostas ─ falou o amigo espiritual, com a voz mansa e um olhar tranquilo.
Imediatamente, o amigo espiritual colocou a mão sobre a fronte do Osvaldo, que foi lentamente se acalmando, entrando em um sono profundo.
Continua...
NOSSOS COLUNISTAS
Alessandra Valle, Carlos Palmito, depois Luiz Primati e Sidnei Capella.
Carlos li o teu conto. Forte em todos os parágrafos, dores e amor, sangue e paixão, mas as fragrâncias das rosas mostram um lado romântico e doce bastante envolventes. É uma obra de arte perfeita da tua imaginação, parabéns! 😍
Gostei de todos. Carlos, prendendo a todos. O rei das reticências e das aspas. rssss Sidnei, vamos aguardar a transformação desse homem? Será? Semana que vem veremos. E minha amiga Alessandra, sempre com novidades do plantão policial.
Luiz, o conto, fantasmas no apartamento achei interessante, do início ao fim fiquei preso na história. Fiquei feliz com o final! Na parte do laxante, dei boas gargalhadas. Parabéns!
Palmito, que conto sensacional, ao final de cada capítulo, fico esperando ansiosamente o próximo, meu amigo você tem o poder de escrever e de prender os eleitores nas histórias. Parabéns! Carlito.
Alessandra, apesar de tudo, o amor de mãe nunca acaba pelo filho. Está mãe despertou esperança, ao ser atendida por profissionais da polícia.
O conto mostra: Amor, ética e esperança. Parabéns!