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CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 10 — 18/05/2022

Mais um conto de Carlos Palmito. É possível reviver infinitas vezes? Quem é o abençoado pela vida eterna, ou poderíamos dizer que é uma maldição? Não importa. Leia e descubra. Boa diversão!


Leia, Reflita, Comente!


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ROSAS BRANCAS NUM JARDIM NEGRO


por Carlos Palmito


Acordo selado com um aperto de mãos, o último trocado entre nós, olhares cativos um no outro, somos o aço e o imã, a vida e a morte, sendo que foste sempre muito mais vivo que eu.


Agora olho para ti, o último dos meus amigos, aquele que me acompanhou por infindos anos, o único com quem podia falar abertamente, eras a santa divindade a quem confessava os meus pecados, o pastor desta ovelha tresmalhada.


Vi a cidade sugar-te a essência e a vitalidade, os cabelos negros tornarem-se brancos, a pele a enrugar, enquanto eu permanecia o mesmo, imutável, uma aberração no centro da palhaçada cósmica, expurgado do reino dos mortos, renegado pela primordial Deusa do sono perpétuo.


O pacto que acordámos é simples, consiste numa garrafa de puro malte e um brinde às estrelas; viajar duas vezes por ano ao negro jardim das mansões de mármore, erguer o cálice à vastidão imensurável do vazio para te recordar. Verter metade da bebida no teu jazigo, e tragar a restante.


Uma para celebrar o dia em que nos conhecemos, e a outra para relembrar o dia em que a senhora dos ossos te levou.


Nuvens de fumo elevam-se ao infinito, mesclam-se com as de água acima das nossas cabeças, uma tempestade que teima em não rebentar, se Deus se recusa a chorar por ti, derramarei então eu uma lágrima saudosa de um futuro que nos foi negado, meu irmão.


Ao meu nariz chega o aroma inconfundível da morte, aço em combustão, carne a ser dilacerada por chamas, sangue misturado com lágrimas, gordura humana a fritar dos corpos aprisionados nas suas intocáveis viaturas, o holocausto enclausurado numa autoestrada que a todos transportou em direção ao abismo.


Se tivesses sobrevivido, meu caro, hoje terias muito que trabalhar, contudo, passaste de médico legista para um simples cadáver que em breve será conspurcado numa sala desprovida de sentimento.


Começo então a ouvir o lamento das sirenes elevarem-se para lá dos berros esquizofrénicos dos sobreviventes, as ambulâncias e policia vinham a caminho, a ordem no meio do caos.


Ao meu redor, contemplo por entre o fumo, silhuetas do que julgo serem pessoas, ou talvez sejam já os espíritos delas em busca da sua luz ao fundo do túnel.


Opto por acreditar serem pessoas que se tentam auxiliar mutuamente, ou quiçá se ajudem unicamente a si, como seres egoístas e egocentristas que sempre foram, mas sim, são pessoas, e não fantasmas, esses subsistem somente na minha demência.


Tenho plena consciência que os poderia socorrer, mas não é a hora nem o momento; para mim, esta noite será de luto, juntar um pouco mais de negro ao negrume que me complementa, agora choro por ti, pai que não me geraste, os egos, esses que se fodam!


Aproximam-se cada vez mais os salvadores, montados nas suas ruidosas montarias, com as luzes azuis a piscarem freneticamente.


Na atmosfera o aroma da esperança sobrepõe-se ao da borracha queimada, metal chamuscado e cinzas humanas, está na hora de partir.


Largo a mão inanimada daquele que foi meu pai, irmão e filho no mesmo espaço temporal, consinto o germinar de uma última lágrima nos meus olhos cinza, e salto os rails de proteção.


Já no meio da vegetação, olho para trás, memorizando cada aspeto do eclodir desta noite, vejo as infernais chamas alaranjadas intercaladas com a escuridão fumegante elevarem-se acima da humanidade, contemplo os homens fardados a correrem aparatosamente em auxílios tardios, e escuto os brados das sirenes que não se calam.


— Adeus! — A única palavra que consegui proferir. Virei-me, e corri pelo meio do mato, sou o lobo eremítico uma vez mais, o selvagem indomesticável… sou a solidão que odeio.


Perdi completa noção do tempo nesta fuga desenfreada acompanhada pelas estrelas e as parcas nuvens que se desenham no negro horizonte, tal como os lobos, sou um filho da noite, expurgado do inferno, renegado pelo dia, se alguma vez o vi, esqueci-o nos confins da memória.


Recobro fôlego encostado a uma árvore, no infinito a lua brilha, facultando à rosa-branca que me adorna a mão esquerda tonalidades amareladas, está frio e estou nu, sempre foi assim, quando sou atingido pela dor dispo-me de preconceitos, regrido ao selvagem, uivo em agonia e desejo de morrer.


Bem lá em baixo, no sopé da colina, as luzes policromáticas da cidade cintilam sobre a escuridão notívaga, justapondo-se ao prateado lunar, uma meretriz internacional disfarçada de virgem no harém de sultões utópicos, a decadência em ascensão no núcleo desta ruinosa civilização.


Acredito que ela é a minha progenitora, a minha verdadeira mãe, nasci da sua corrupção, no momento em que o primeiro habitante daquele esgoto ao ar livre pensou em cometer um crime, quando um marido levantou a mão à sua esposa, ou uma criança a voz aos seus procriadores.


Inicio a caminhada na sua direção, permitindo que Éolos acaricie toda a extensão corpórea do meu ser, sinto uma atração inacabável pelo seu degredo, pelo asco que escorre direto das suas entranhas, amamenta-me, cidadela divina, alimenta esta rosa-branca e tenta corrompê-la; seria tão mais fácil!


Corro de novo, sendo agora o sopro no dorso de um Deus esquecido, a lua começa a esconder-se, e o vento acelera comigo, uma cavalgada debaixo das nuvens em direção à prostituta empertigada com aparência de cidade.


Por mais que tente, não a consigo evitar, a maldição nesta atração, um complexo de Édipo, órfão de pai e mãe; sou uma presa hipnotizada ao luar quase inexistente, e tu és o lugar onde todos os meus passos vão sempre desaguar… amo-te, odeio-te.


Em minutos, estou à tua porta, escancaras as pernas na minha presença, nauseabunda meretriz, senhora da podridão, mãe do meu ser.


Afoito e decidido, entro em ti, uma rosa-branca para este jardim negro, perco-me nos teus becos, como um homem na púbis da sua amante.


O lixo que redemoinha, e o sopro infeto fazem-me querer ir mais fundo, mais forte, mais selvagem, mais animalesco. Fosses uma mulher e cravar-te-ia os dentes para te arrancar um pedaço de carne. És minha, grita o escravo para a sua amante.


Todos somos pedaços de nada, completos vazios cósmicos, poeira de fadas num planeta que as abomina, aberrações desprovidas de sentimentos, caixões ambulantes à espera de serem depositados no ventre de Gaia, e eu sou mais um, diferenciando-me apenas pelo fato de não perecer, a imortalidade é a minha danação.


Enquanto percorro nu os becos lamacentos, sentindo a chuva começar a despencar sobre a perdição frígida desta vaca cintilante, na minha cabeça, começam a dançar as imagens de todas as amantes que já tive, todas as que vi nascer e morrer.


Fantasmas de um passado longínquo que está sempre mais presente que a própria atualidade, a todas amei, e todas perdi em nome de Cronos, o eterno relógio que jamais para, que não nos concede um segundo para lá do nosso, pó ao pó, segundos para as eras seculares.


Refugio-me, das ‘kamikazes’ gotas de água, nos esgotos, fundo-me com os excrementos e ratazanas da cidadela perdida, conheço tão bem a podridão acima como a cidade abaixo, caminho de olhos fechados no meio dos vossos desperdícios, penetro cada vez mais fundo em ti, metrópole materna. Sentes-me remexer-te as entranhas?


Quando o corpo começa a ceder e os músculos exigem descanso, paro, na antecâmara da desolação, o negror é intenso, o odor nauseabundo.


Sei que na minha direita existe uma piscina de águas pluviais, quase sem fundo, tenho conhecimento que estas mesmas vão desembocar no rio, expulsas dos labirintos das tuas vísceras, defecadas para a purificação ritualista das águas em movimento.


Apetecia-me um cigarro, não pelo vício, nem tão pouco pelo aroma, pois um não me é permitido pela cicatrização rápida do corpo, e o outro impossibilitado pelo bálsamo nauseabundo, mas simplesmente pela sua companhia, a sua ponta flamejante em frente aos meus olhos, uma estrela nos esgotos.


Neste momento, tendo em conta tudo o que percorri, sei que me encontro nas imediações do jardim, tão diferente nesta ponta do tubo, num lado flores, no outro, putrefação, a vida a desabrochar dos seus opostos, a flor que nasce da merda!


Caminho um pouco mais em direção às escadas metálicas que ligam à superfície, sento-me na sua base a apreciar a beleza interna da cidade, as profundezas da meretriz que me pariu, fecho os olhos para me refugiar da demência, do estado doentia da minha alma.


Adormeço ali momentaneamente, rodeado de ratos e merda, um rei nu nas profundezas do inferno, a minha rosa emana um brilho incandescente, sonho com paixões extintas e tesões de eras distantes, sonho contigo, pai, irmão, filho, e desperto com Ódin.


A voz de uma criança a conjurar um Deus antigo, vejo-lhe a aura trespassar a entrada do esgoto, uma luz guia no meio da minha decadência, afinal nem tudo é mau em ti, mãe!


Começo a subir as escadas, lentamente, apenas para conseguir ter um vislumbre da inocência perdida, mas apercebo-me da chegada de uma nova aura, o oposto, a podridão que consigo sentir aqui, a putrefação que consegue transmutar o cheiro das fezes no mais odorífico dos bálsamos, roxa como a morte.


Acelero a subida, salto degraus de três em três, como um alpinista, a criança está em perigo, não será Ódin a salvá-la, é impossível um Deus morto defender a pureza viva, resta então uma rosa-branca num jardim negro.


A tampa de entrada das profundezas da metrópole está na ponta de um beco, vejo-os na outra ponta, corro na direção de ambos, da delicadeza e da brutalidade.


— Acho que o vi lá atrás, se quiseres eu levo-te no meu carro — ouvi o asco dizer por entre uma nuvem de podridão excruciante.


Salto para cima do táxi, de onde me propulsiono em direção ao varandim de uma habitação.


— Não é preciso, ele está ali — soprou o gato, o príncipe da podridão agarrou a mão da pureza, e eu investi mesmo da ponta do varandim desta hospedagem.


Aterro em cima da desculpa existencial de homem, do desperdício de oxigénio, aproveitando o ímpeto para o empurrar em direção à escuridão.


— Gostas de menininhas, é? — rosnei-lhe barbaramente.


O senhor-podridão estava estupefacto, perdido entre a minha nudez e imundície, vi-o esgazear os olhos quando encarou a rosa-branca, vi-lhe pânico e reconhecimento.


— Sabes quem sou, pedaço de merda?


O príncipe tóxico puxou por uma faca de entre as suas vestes, o pavor mantinha-se, e o olhar continuava cativo no meu ornamento. Irritou-me aquela adaga.


— Tenho umas princesas para ti, monte de esterco — agacho-me e impulsiono-me na sua direção, impelindo-o para o buraco do esgoto. — Umas ratazanas homicidas que se deliciarão contigo.


Colido com ele, ambos tombamos numa queda livre pelo buraco aberto para as profundezas mais recônditas da minha progenitora.


O baque foi atroz, aterrei amparado pela mão direita, gritei de raiva e dor ao sentir os ossos do pulso despedaçarem-se, o meu corpo pode sarar rápido, a uma velocidade suficiente para não me conseguir sequer embriagar, contudo, a dor, essa está sempre presente.


Ergo-me apressadamente, para encarar o meu adversário, um príncipe mórbido iluminado pelo buraco acima, qual lua das terras de Hades.


Vejo-o levantar-se a custo, apoiando todo o peso na perna direita, presumo que a descensão lhe tenha dilacerado os ossos da outra, o seu rosto mostra um olhar aterrorizado de estupidificação, por mais improvável que possa parecer, ainda segura a faca na mão esquerda.


Aproximo-me vagarosamente da sua presença real, um príncipe do lodaçal.


Eleva a faca à altura do rosto, será que o obtuso monarca de um reino de ossos se pretende defender com aquele pedacinho de aço?


Paro a milímetros da sua asquerosa pessoa, os meus ouvidos captam o som dos ossos do pulso a reconstruirem-se com uma precisão de marcadores genéticos, na minha génese está a cidade, na essência o esgoto.


— Sê bem-vindo ao teu derradeiro reinado — sussurro, enquanto lhe pego na mão esquerda e o forço a cravar a adaga no meu próprio peito, a dor faz-me sentir vivo. — Aqui só encontrarás morte e desolação, o jardim perfeito para um monarca, não achas?


Da sua boca, apenas um silêncio inodoro, indigno de qualquer membro da realeza, sinto o sangue viscoso escorrer pela minha imundice, e as ratazanas começarem a aproximar-se, conjuradas pelo odor adocicado da hemoglobina.


O príncipe desperta nesse momento do estado de choque em que se encontrava, aterrorizado.


Emite um guincho pavoroso, qual Banshee, quando uma das ratazanas começa a subir pela sua perna despedaçada, em terror dá um pulo para trás, caindo na piscina pluvial.


Uma fúria incomensurável apoderou-se do meu ser, arranquei a faca do peito, tingindo de escarlate a imundice da antecâmara, os olhos cinza semicerraram-se, e mergulhei no lago ancestral atrás do excremento em forma humana.


— Se, nesta tua merdosa existência, tens algo para te despedir, aproveita agora — envolvo-lhe o pescoço num abraço férreo e forço-nos a submergir, sentindo a correnteza puxar-nos em direção ao rio.


Agarro-me à grade separatória da ejaculação aquosa para o exterior, não nos permito a irmos precocemente, sinto-o debater-se, tentar morder-me o braço para se livrar da prisão em que o enclausurei. “Hoje encontraste a menina errada, filho da puta!”.


Lentamente sinto a resistência dele abrandar, até já não restar nada a não ser uns espasmos musculares, depois até esses se desvanecem, eu aguento mais, o meu corpo tenta a todo o custo reconstruir-se, contudo sinto os alvéolos pulmonares a rebentarem, milho numa panela.


Começo a perder a consciência passados vinte minutos, nunca tentara por afogamento, será que desta resulta? Apago finalmente, sem nenhuma luz ao fundo do túnel, sinto-me feliz; no fundo, sempre adorei morrer, de todas as vezes, mesmo com dor e sofrimento.


Naquele espaço residual entre o estar morto, e o despertar, sinto-me em harmonia, ligado a todas as células de ti, rainha mãe dos dejetos humanos.


Consigo respirar através do teu liquido amniótico, apenas lá consigo sentir o fluxo do Nirvana, a conexão a todos os seres vivos, no teu ventre, senhora dos ossos, inalo o perfume do mais belo dos jardins negros, dando alento à minha rosa-branca.


São sete da manhã, acordo uma vez mais neste local, sentindo o glacial toque de metal no meu corpo desnudo, fico por momentos a contemplar a penumbra, enquanto inspiro visceralmente, sentindo no ar o característico bálsamo da morte.


Sento-me no leito onde milhentos cadáveres já passaram, e onde mais mil passarão, antes de decretarem o óbito desta mesma peça metálica; o derradeiro sono dos justos, profético toque da divindade suprema que a todos deseja, mas que continua impiedosamente a recusar acolher-me no seu abraço eterno.


Conheço cada centímetro da morgue, tal como ela conhece cada centímetro da minha derme.

Na minha esquerda descansam vários bisturis, afiados. Em tempos senti-os a abrirem o meu corpo, como se fosse uma lata de conserva, e nessa forma terem um vago vislumbre do local onde a alma habita.


No lado direito está uma serra circular, lembro-me do dia em que o legista, não o de hoje, que está na sala ao lado, mas sim o meu velho amigo legista, estar a forçar passagem pelo recetáculo da minha essência com ela, e eu despertar nesse momento.


Recordo-me do seu pânico perante a improbabilidade do momento, os olhos arregalados totalmente cravados em mim, tal e qual uma presa a contemplar mesmerizada o predador que a irá devorar.


Esse foi o nosso primeiro encontro, bastantes mais tivemos, habituou-se à minha presença, à condição da impossibilidade existencial que carrego como uma maldição, o morto renegado.


Tornámo-nos amigos com o passar dos meses, dos anos, a cada noite que eu aparecia; começou a reservar um local nas traseiras da morgue apenas para mim, onde normalmente está uma muda de roupa, caso seja necessária, e uma garrafa de puro malte; o médico legista e o seu cadáver ambulante.


Hoje estou sozinho, e o legista é apenas uma memória, a luz salvadora da danação emitida por um longínquo farol…




AUTOR

Carlos Palmito

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