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CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 16 — 29/06/2022

Mais um conto de Carlos Palmito. Hoje a melancolia tomou conta de vez desse caderno. No nosso Podcast coloquei uma música linda e triste e espero que tenha ficado à altura de tão belo conto. Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.


Leia, Reflita, Comente!

https://leb.fbi.gov/image-repository/police-lights-2-stock.jpg




PARA PROTEGER E SERVIR


por Carlos Palmito


Parte 1 — Aprendiz de anjo


— Disputa — Samuel parou momentaneamente o seu discurso, tirou a mão do volante e passou pelo queixo como que em busca de uma memória esquecida, sempre com o olhar acastanhado preso nos faróis do veículo da frente. — Sim, mais ou menos foi isso que aconteceu naquela altura.


Jéssica seguia a seu lado hipnotizada pelo discurso, as ondas celestiais cintilavam e a cidade era rubra, estrelas nasciam e morriam longinquamente, e naquele veículo seguiam apenas eles, protetores de cidadãos abandonados por Deus, anjos sem asas numa cidadela pecaminosa.


— Mas, como terminou? Hoje em dia não vemos disputas selvagens a acontecer, a cidade parece dormente — enrolou os cabelos negros com o dedo da mão direita. — Isto pode parecer doido, mas esta povoação, isto aqui que jurámos proteger e servir parece ser um dragão a acordar.


— Isso é o mais estranho, Jéssica, ninguém sabe o que se passou. — Abriu pisca para a esquerda, e entrou na avenida, notando um símbolo draconiano numa parede. — Simplesmente foi abrandando, os líderes de gangues foram desaparecendo a pouco e pouco, isto há uns cinquenta anos.


A cadete desviou momentaneamente os olhos para a calçada, nela corriam pessoas, visões espectrais de um passado remoto e de um futuro por nascer, sentia o vento na cara, mesmo com a janela fechada, Éolos, o cão vadio dos vendavais, um arrepio percorreu-lhe a derme, os poros ergueram-se.


— Nenhuma pista, Samuel? Nada? Simplesmente foram-se?


Novamente o manipulo controlador das luzes direcionais foi acionado, a alavanca que nos indica o caminho, o percurso, as viragens; piscaram laranja na noite, Samuel estacionou, deixando as luzes azuis no tejadilho ligadas, estáticas, como divindades à espera do cataclismo.


— Não, alguns deles apareceram, no fundo do rio atados a um barco apodrecido — Abriu a porta e saiu, sentiu o frio notívago e o odor de mil cadáveres desprovidos de sangue. — Anda, vou-te mostrar uma coisa.


Jéssica saiu da carruagem de anjos da perdição, colocou de imediato o quepe a proteger-lhe a nuca, elevou o olhar para o alto, a cruz do campanário abandonado, ladeada por dois dragões, existia um terceiro mais abaixo; fez o sinal da cruz em respeito ao abandono dos deuses.


— Olha à tua volta, cadete, contempla tudo aqui neste campanário e diz-me o que vês.


A rapariga observou atentamente, viu as ruínas de uma civilização, pedras em derrocada, tendas e pessoas sem rumo, que lutam contra a tempestade por nascer, viu flores iluminadas por candeeiros, sentiu-lhes o aroma a tristeza, abandono, o coração da metrópole que a todos engole.


— Tendas, um acampamento, sem-abrigo — Sentiu os olhares dos invisíveis cravados em si, negros, castanhos, azuis, verdes, cegos. — Vejo pobreza, pessoas que desistiram da vida.


— Olha com mais atenção — O céu verteu uma lágrima cadente, Éolos abrandou, a criança que brinca com os seus soldadinhos de chumbo susteve a respiração. — Aquelas tendas ali, por exemplo — apontou para um emaranhado de lonas coloridas.


O cabelo negro agitou-se ao sabor do vento, mesmo por baixo do chapéu de polícia, qual seria a lição a tirar dali, que quereria o seu mentor que ela visse?


— Não sei, Samuel, o que é suposto eu ver ali?


— Abandono Jéssica, se notares com atenção, e contares as pessoas que estão aqui a olhar para nós, vês que existem mais tendas que pessoas.


Ela semicerrou os olhos, seria possível?


— Têm estado a desaparecer, exatamente como os gangues nos tempos em que o meu avô era polícia.


— Tens a certeza? — questionou, era um patamar que a novata não queria ultrapassar, mas como poderia ele fazer tal afirmação? — Não estarão nas ruas? Ou na paróquia a comer sopa?


— Tenho, absoluta — a calma estava lá, na voz, e… tristeza também. — Nunca ninguém os procura, sabes? Como se… sei lá, como se fossem invólucros vazios, um nada no onipotente universo.


Jéssica observou novamente, todo o cosmos na sua frente, as cores e cheiros palpáveis, as pessoas e o gato, de cima as estrelas brilhavam intocáveis na sua durabilidade, a eternidade de quem morreu faz muito.


— Vamos cadete, tenho mais mundos para te mostrar hoje — continuava calma a voz, melancólica, existiam universos por captar na sua entoação, melodias de fantasmas esquecidos no abismo da memória… anjos, para proteger a merda da humanidade.


A rapariga de cabelos negros entrou no carro, tirou o chapéu azul e sorriu para ele com a alma.


— Hoje, Samuel, estou para aprender, para conhecer o mundo que o teu avô mostrou-te — baixou os olhos para as mãos que estavam cravadas nos joelhos, uma tentativa de se prender à realidade. — Vamos.


O carro partiu, no tejadilho a luz mantinha-se azul, no cimo a lua contemplava a criação de um Deus, nos bancos os dois policias seguiam em silêncio escutando a ausência de palavras no rádio, as crianças do infinito tinham esquecido as divindades.


Entraram de novo na avenida que se encontrava cheia de almas penadas, pessoas em busca de realidades perdidas, de flores, rosas, jasmins, trevos e especiarias, a sorte na conjuntura universal que todos tinham menos elas.


Manipulo pressionado para cima, o laranja no lado direito do carro começou a cintilar, na frente a carruagem seguiu, sem nunca saber para onde iriam às autoridades.


A caixa de velocidades voltou a reduzir, mudança após mudança, a central estava muda, o homem do gorro verde passeava um carrinho de inutilidades, tesouros que apenas ele compreendia, os deuses esta noite estavam calados e os pirilampos em fúria desmedida.


— Aonde vamos? — questionou Jéssica, a cadete de vinte e poucos anos, saída de uma escola angelical onde ainda ensinavam a diferença entre o bem e o mal.


Nenhuma resposta obtida, as rodas continuavam o percurso como se fossem um objeto com vida conhecedor do seu destino, lixo redemoinhava entre vasos, as árvores dançavam com espectros por nascer, quiçá de ambos os passageiros do habitáculo azul.


A alaranjada tonalidade cromática piscou para a esquerda, o ronco dos cavalos chicoteados por um pedal acalmou, nas redondezas existia um vazio e uma banca de comida “Simão, os melhores cachorros de Nova York!”.


— Agora — o policia mais velho sorriu, mentor de uma adolescente que quase poderia ser sua neta, se alguma vez tivesse casado. — Vamos comer, que estou com fome. Este é o local, as melhores iguarias a preços irrisórios. — Desligou o motor, os equídeos enraivecidos calaram-se num coro de mudos.


Desmontou os seus corcéis, quantos estariam aprisionados naquela grandiosa máquina, almas compactadas umas nas outras, que há muito esqueceram o seu papel, exceto beber diesel e baforar fumo negro para o asfalto quente da noite.


A rapariga de negros cabelos desceu com o seu mestre, sem cerimónias nem liturgias, estarão vivas ainda as estrelas que pulsam no universo, ou até mesmo as dos versos de crianças?

O ar estava empestado de aromas, desejos carnais de hambúrgueres, cachorros (estranho nome, cachorro-quente, um cão numa panela de pressão com o pipo a apitar) ratos apanhados em ratoeiras e rouxinóis a dormirem em casas de palha como os porquinhos numa história de lobos.


— Simão, rapaz — os olhos castanhos do polícia de meia-idade fitavam o velho que servia salsichas numa roulotte, carruagem de lixo alimentício da noite, servido a quente, fingindo ser realeza. — Qual o teu melhor prato de hoje?


O homem riu alto dentro da sua serventia, existiam pirilampos na noite esquecidos, espelhos que passam demónios como uma televisão em horário noturno, poderiam avalanches se iniciarem pelo simples gargalhar, mas acima de tudo, era genuíno.


— Se queres pratos, podes ir ao arco-íris grelhado, aqui só sirvo canídeos e ratazanas.


Jéssica ficou pasmada, Samuel riu, Simão grunhiu, o arco-íris esqueceu-se de surgir por entre a lua, os lobos rosnaram na floresta e partiram na sua caça por gamos e princesas incendiadas.


— Dá-me um cachorro com tudo a que tenho direito — olhou para as trevas no olhar da mesma pigmentação dos cabelos da sua colega. — Para ela, podes dar exatamente a mesma dose, tenho a certeza que vai gostar.


Ela semicerrou os olhos, mas anuiu. Em minutos, ambos comiam, lambuzavam-se e limpavam-se aos guardanapos reciclados, existem cometas no universo, lutas na cidade, aplausos dementes de gente que sente prazer no sangue alheio, vítimas de televisão, zombificados pelos pixéis de uma realidade alternativa.


Ali, o real era outro, era cheiro a lixo, miséria, reminiscências de tendas coloridas, astros brilhantes, ventos gelados, copos de cerveja amontoados junto aos caixotes, a selva é assim, especialmente a de betão.


— Quanto queres, Simão?


— Para tão excelsos senhores — o velho desdentado desviou a atenção para Jéssica. — Peço desculpas, senhor e senhora, mas, como dizia, hoje é oferta.


— Obrigado meu caro. — Samuel entrou no carro, a sua companheira angelical, após lamber o resto do cão de uma panela de pressão que lhe escorria por entre os dedos fez o mesmo.


Uma vez mais e, novamente, o carro iniciou marcha, entrou na avenida, a artéria principal da cidade construída sobre escombros de uma fragilidade humana, e dirigiu-se para norte.


— Tendas e bancas de comida, que mais me vais mostrar hoje?


Samuel não respondeu, seguiu para norte até a avenida terminar, aí entrou um pouco por um vestígio do que em tempos primordiais foi um carreiro, até estancar os seus corcéis.


— Anda, vou-te mostrar mais sobre a noite, é nela que vais viver, sabes? Debaixo das estrelas, observada pela lua como se fosse uma câmara de televisão — riu, era alegre o homem de olhos avelã. — Sorri, estás na televisão.


Jéssica riu com ele, era impossível ficar sem o fazer perante o seu mestre, avô de sangue desconhecido.


— Olha para baixo, Jéssica.


Ela obedeceu, o rio corria sereno, sem luzes nem destino, dizem que vai para o oceano, mas nunca ninguém nos ensinou onde desagua um rio cujas fronteiras estão no limiar da cidade, da realidade embutida por deuses em desuso.


— Foi ali — apontou para a ponte. — Que os tais gangsters estavam amarrados a um barco em decomposição, vim aqui apenas para terminar a história deles.


Ouviu-se o apito de sirenes, e a uivar para além de todas as outras existia a do quartel de bombeiros, outro tipo de anjos, irmãos numa batalha do bem socialmente imposto, do outro lado viam-se pirilampos, na artéria da cidade, luzes azuis.


Algures, na central da polícia uma chamada foi atendida, no outro lado da povoação o pânico ocorria, a fábrica de papel a ruir, a história a acontecer, um rasgo na existência.


— Comando distrital da polícia, em que posso ser útil? — A voz era de uma mulher, cinquenta anos, mínimo, a notar pelo tom da mesma.


— A loba — pânico numa voz juvenil. — Matou a aranha, a loba matou.


— Peço desculpa, pode repetir?


— A loba matou a… não, preciso ir embora.


— Onde se encontra, pode descrever a loba? — paciência é a melhor arma na noite, por vezes supera até uma bala.


— Não, não consigo, mas venham, o duende atirou os restos da aranha para o lixo e roubou a cria da loba.


— Posso pedir que aguarde em linha até os agentes chegarem?


Como resposta, a senhora do lado de lá da linha de pânico obteve o som de passos a correr, na noite as criaturas que não dormem, mordem, muitas delas sem o saberem.


— Algum carro-patrulha disponível? — esperou.


— Aqui carro numero cinco, seis, um, diga central. — Samuel estava a iniciar marcha a ré, as sirenes tinham-lhe chamado a atenção.


— Tenho aqui uma chamada que preciso que averiguem, provavelmente foi uma brincadeira, mas nunca se sabe. Podem ir ao beco das almas perdidas ver se encontram algo estranho lá? Tive uma chamada caricata com origem na cabine telefónica daquele local.


— E os bombeiros?


— Já têm policias suficientes, Samuel, além que estás com a novata, faz o que te pedi.


Samuel ligou as sirenes, a sua carruagem celestial avançou na noite a gritar, o trânsito desviava-se, Jéssica estava muda, e na casa dos deuses, uma criança perguntava-se se acaso o anjo será imortal.




AUTOR

Carlos Palmito

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