Valleti Books abre um novo espaço para os autores e dessa vez é para os contistas. Se você escreve contos, peça para participar desse novo caderno. Aqui você pode nos enviar um mini-conto, ou um conto maior para publicarmos em partes. E para estrear esse novo blog, diretamente de Portugal, Carlos Palmito. ÊXODO traz a imagem apocalítica do mundo em que vivemos. Quando li, tive a impressão de ser algo de um futuro bem distante, enquanto lembrava uma situação atual. Ficção ou realidade? Distante ou atual? Bem, leia e tire as suas conclusões. Arléte Creazzo nos mostra um Conto de Natal fora de época e mesmo que essa data tenham passado, ainda é possível sentirmos o clima natalino em suas palavras. E para finalizar, Alessandra Valle conta um pouco do universo de pessoas desaparecidas.
Leia, Reflita, Comente!
ÊXODO
por Carlos Palmito
IG: @c.palmito
Tomo 1 — Peste
O dia raiou como todos os outros, o sol incendiou os céus, a escuridão trocou de lugar com a luz… nas florestas do tempo os pássaros entoavam doces melodias, e nas cidades os veículos bradavam as suas enfurecedoras buzinadelas.
Era simplesmente mais um dia no paraíso.
Os noticiários do mundo falavam de derrotas e vitórias na política, no desporto, nas vidas de pessoas despreocupadas, falavam da racionalidade e irracionalidade da população em geral, um gato bom e um polícia mau, um polícia bom e um gato mau… banalidades que já ninguém escutava neste universo de marionetas.
Nas montanhas, isolada em solidão e neve existiu uma aldeia que não acordou, o mundo demorou um mês a descobrir a ausência destes cinquenta seres… Foi acionado um alarme, colocados perímetros e investigada a origem do fim da meia centena de almas que ali se perderam.
Nem uma semana passou, e mais quinze localidades espalhadas de forma aleatória no globo esqueceram-se de despertar.
As notícias principiaram a focar-se na epidemia, a peste do sono como falavam, as pessoas que pereciam no seu adormecer.
A pouco e pouco o pânico entranhou-se no âmago dos homens.
Um ano passou e começaram a tombar cidades completas, da noite para o dia.
Tomo 2 — Guerra
Com o medo, regiões inteiras isolaram-se, todas se tornaram ilhas inacessíveis, que recebiam os seus visitantes com balas e petardos.
Surgiram as primeiras teorias, um vírus secretamente criado em laboratório para dizimar metade da população, ou para um determinado país conquistar o mundo, teorias de nações que tinham antídotos criados, e nunca eram as mesmas, umas vezes umas, outras vezes outras, sempre em teorias com base em nenhum fundamento.
No meio destes fundamentalismos e falsas moralidades começaram as movimentações hostis, fantoches em forma de soldados colocados nas fronteiras.
Mas a peste passava por eles, invisível, como o vento nos dourados cabelos de uma donzela, para ir pernoitar nas cidades que jamais veriam uma nova aurora.
Na sequência destes acontecimentos surgiram milícias, com o propósito de defender as suas populações de estranhos, pois eram os forasteiros que traziam o mal do sono, isto segundo teorias… germinaram também vigaristas, que vendiam uma inexistente cura por preços exorbitantes, apesar destes intrujões terem, regra geral, vida curta.
Aconteceu então o impensável, um avião civil foi abatido em pleno ar, acusações foram trocadas, vozes e ódio elevaram-se, antigas disputas reergueram-se, e foram então enviados os soldados, foi a gota de água.
Ao longe, um general premiu um botão, e o absurdo tornou-se realidade, foi o prelúdio da guerra nuclear.
Continente contra continente, nação contra nação, cidade contra cidade e irmão contra irmão.
Uma década inteira de chacina, o solo foi regado pelo sangue de inocentes, o ar tornou-se asfixiante, perante a radiação.
Durante estes dez anos ninguém sequer se apercebeu que a epidemia tinha desaparecido, já não era o sono que matava, mas sim o homem na sua mais animalesca cólera… sabem, a violência está na cadeia genética humana.
Tomo 3 — Fome
Os solos tornaram-se inférteis, os peixes afogaram-se no oceano e a caça desapareceu das vastas planícies radioativas deste novo mundo.
Foi tentada agricultura, mas tudo o que nascia eram cinzas e memórias de um tempo remoto. Os animais na pecuária morriam de doenças inenarráveis, nasciam já fracos, pouco duravam… eram escolhidos os sãos, ou os que aparentavam não estar doentes, mas estes representavam apenas uma gota de água na imensidade de uma sociedade voraz e sedenta de alimento.
Rapidamente as prateleiras nos supermercados ficaram vazias, subsistindo apenas pó e recordações do antes da peste do sono, quase duas décadas atrás.
Quem conseguia produzir alimento era constantemente assaltado, tal como quem vendia, os fazendeiros assassinados, suas mulheres violentadas, seus filhos atirados para dentro dos poços de águas contaminadas.
A fome atingiu então continentes outrora abastados, a moeda passou a ser lixo, os alimentos ouro e as águas purificadas diamantes.
Nas cidades a comida começou a ser racionada, e surgiram boatos de canibalismo, venda de carne humana no mercado negro.
Tomo 4 — Morte
Mais uma década passou, poucos eram os homens que restavam, a civilização sucumbiu perante a sua própria violência.
Doenças presumivelmente extintas, ou embaladas a vácuo, em laboratórios esquecidos, voltaram.
Para onde quer que se encarasse, tudo era pó e cadáveres, florestas que se transmutaram para desertos, rios sem vida e cidades sem buzinões.
Claro que ainda existiam pequenos focos de população, mas esses focos nem se podiam apelidar de sociedades, eram a barbárie na sua exponencia máxima.
O único sentimento que sobrou foi o medo e o ódio.
Tornaram-se inférteis os homens e mulheres, tal como o solo e as águas.
Todos tombavam nas ruas da amargura, morriam simplesmente e sobriamente ali ficavam, já não existiam sequer aqueles que enterravam os corpos… O planeta terra transformou-se num cemitério a céu aberto, este foi o ato final da peste do sono, que há muito tinha partido, ficando apenas nos bastidores a observar o desfecho da sua obra.
Esta foi a forma que a natureza encontrou para erradicar o parasita que em si vivia, de voltar a equilibrar a balança entre a vida e a morte.
Êxodo
Aquando dos acontecimentos, desde o premir do botão, foi iniciado um projeto secreto, homens e mulheres raptados das suas casas e levados para instalações militares escondidas do olhar humano, aqui viviam lideres espirituais, cientistas, mecânicos, tripulantes de naves.
O projeto Noé nasceu assim, levando com ele pessoas aleatórias.
Todas estas gentes eram selecionadas consoante numero de contribuinte, raptadas e levadas para se encobrir a arca… as arcas.
Levaram-se animais e plantas, levou-se o resto da humanidade, enquanto as sobras ficaram a apodrecer no sol nuclear.
Num dos dias, quando tudo estava perdido, levantaram voo as arcas de Noé, o que sobrou da civilização, com elas foi fauna, flora e o coração humano…
Perderam-se no espaço por prolongados anos, décadas… os nascimentos eram controlados, para que não se excedesse o número máximo de viajantes.
Até que, um dia, enviaram uma nave de reconhecimento à terra, ver o que sobrou, como ficou.
Quem veio já não era nenhum dos originais, mas sim descendentes deles, e esta história, esta crónica… será contada noutra voz, por outra pessoa… por uma pessoa que muito estimo… por ti…
UM NATAL ABENÇOADO
Parte 1
por Arléte Creazzo
IG: @arletecreazzo
A FAMÍLIA OLIVEIRA, ERA UMA família como qualquer outra, não tinham nada de diferente ou extraordinário.
Paulo e Carolina eram os chefes da família. Tinham um comércio, cujo escritório ficava na sala da casa onde viviam.
Com eles moravam, Camila a filha caçula, o mais velho Pedro com sua esposa Raquel, e a pequena Alice, de 4 anos.
Gostavam muito de celebrar, tudo era motivo para comemoração.
Aniversários, Páscoa, Festa Junina, Dia das Crianças, Réveillon, qualquer data era razão para reunirem a família, os amigos e festejarem.
A festa mais esperada do ano, com certeza era o Natal.
Passavam praticamente o ano programando os preparativos.
Dona Carolina e sua filha, amavam enfeites natalinos e todo ano, compravam algo novo para decoração. O Sr. Paulo, mais prático, só reclamava por não ver mais espaço na casa para tantos objetos.
Com a vinda da pequena Alice, as decorações passaram a ser mais constantes.
Em qualquer data a casa se enchia de cor: branco e rosa para Páscoa, branco para Réveillon e o máximo de cor para o Dia das Crianças.
Os aniversários também eram coloridos, já que a cada ano surgia uma ideia nova.
No Natal, amavam as cores tradicionais: vermelho, verde, branco, algo de dourado e prateado também. Luzes não podiam faltar.
Camila e sua mãe sonhavam em ter uma árvore que as fizesse parecer diminutas, e um ano antes da chegada de Alice, conseguiram realizar esse desejo. Foi uma verdadeira promoção. A árvore comprada na antevéspera do Natal, tinha 1,80 m de altura.
— Foi um excelente “investimento” – disse Dona Carolina a seu marido, já que era a realização de um sonho.
Como a árvore era bem maior que a antiga, tiveram também que comprar enfeites novos.
A pequena árvore, foi para o quarto de Camila, que também era decorado em todas as ocasiões.
Geralmente na primeira quinzena de novembro, a casa já recebia as cores natalinas.
Isso não diferiu no ano de 2020.
Embora este ano tivesse começado de forma distinta, já que a partir de fevereiro as pessoas adoeceram de algo que não conheciam, a família Oliveira se manteve unida e com fé.
Agradeciam sempre o fato de ninguém na família ter ficado doente, e se cuidavam como podiam e sabiam.
Alice era uma criança extremamente vivaz, e apesar da escola enviar lições – já que as aulas não podiam ser presenciais – todos ficavam procurando atividades para distraí-la.
Paulo e Carolina eram muito religiosos e sempre participavam como voluntários na igreja que frequentavam. Os filhos já crescidos, não tinham o mesmo empenho que os pais, mas a pequena Alice sempre os acompanhava às missas.
Gostava também de rezar o terço com sua avó, desde que acendesse a velinha para poder apagá-la.
Como trabalhavam em casa, já estavam habituados a não saírem muito, e com a pandemia, saíram menos.
Já que as reuniões com os amigos tiveram que ter um intervalo, com a família se tornaram mais frequentes.
Dona Carolina gostaria muito que os encontros fossem para orações também, mas já se contentava em ter a família unida.
Nos finais de semana, gostavam de se reunir para jogos de tabuleiros, montagem de quebra-cabeças ou cantarem no Videokê.
Tudo sempre era motivo para festas, e nesses momentos, era o fato de poderem agradecer por estarem bem.
Finalmente chegou a época de decorar a casa para o Natal.
Como sempre, na primeira quinzena de novembro, a casa já estava completamente decorada.
Um comprido cordão de luzes coloridas enfeitava a árvore dos sonhos. Havia enfeites diferenciados em formas e texturas, mas as bolas não poderiam faltar na decoração.
As luzes iluminavam toda a extensão da casa.
Se encontrava decoração em qualquer ambiente, por menor que fosse. Nem mesmo o banheiro ficava imune, já que Dona Carolina deixava uma pequena árvore-de-natal sob a bancada e delicados bordados adornavam suas toalhas de mão.
Os tapetes de entrada tinham desenhos e pequenas frases como; ho, ho, ho!
Na garagem ficavam pendurados papais-noéis com seus paraquedas, como se estivessem chegando para trazer a alegria do Natal.
Paulo olhava tudo aquilo com ar de quem dizia: “Para que tanto?” – mas se alegrava ao ver o sorriso no rosto de sua esposa, filha e neta.
Pedro, não se incomodava se a casa tivesse ou não enfeites, tudo era quase que indiferente.
Raquel, sua esposa, havia perdido o pai quando muito pequena, e a mãe aos 16 anos. Desde então, praticamente sozinha, não criou o hábito de comemorações, mas participava timidamente de tudo o que era feito.
A felicidade do casal era ver a alegria nos olhos de Alice, que em seus altos 4 aninhos, já entendia o que era o Natal.
Ela conhecia a história do nascimento do menino Jesus, e que a família trocava presentes para comemorar tudo o que Ele havia deixado de bom.
É claro que Papai Noel também participava dos festejos, já que ele trazia um presentinho para as crianças.
Apesar do Sr. Paulo não ter a mesma empolgação de sua esposa e filha, havia uma decoração que era sua preferida, o Presépio de Natal. Afinal era a decoração que realmente demonstrava o verdadeiro espírito da festa.
Aos poucos ele explicava para Alice, o nome de cada personagem do Presépio e a importância de cada um.
Pedro e Camila trabalhavam em home office, sem precisarem sair de casa. Raquel trabalhava em um comércio próximo, de segunda a sexta, e ficava o dia todo fora.
Sr. Paulo e Dona Carolina, muitas vezes saíam para entregas aos clientes, já que trabalhavam com roupas feitas.
Como havia uma pracinha atrás da casa, o avô Paulo levava Alice para que andasse de bicicleta ou patinete, encontrando com mais algumas crianças. Todas de máscaras como mandava o protocolo de segurança.
As compras eram realizadas por Paulo e Carolina, que cuidavam da alimentação, já que Paulo amava cozinhar, para sorte de Carolina que não tinha a mesma paixão.
Tudo transcorria perfeitamente na família. Todos estavam sempre se cuidando, como tinha que ser.
Em um dia de dezembro, mais precisamente no dia 16, o Sr. Paulo começou a sentir falta de ar, e como era um dos sintomas da Covid-19, foi levado a um pronto atendimento, para ser examinado.
Dona Carolina foi quem o levou.
Logo que chegou, Sr. Paulo foi colocado em um ventilador mecânico para facilitar sua respiração.
Realizados os exames necessários, foi constatado o que a família temia: ele foi diagnosticado com Covid-19.
Não tinha febre, os sintomas eram leves, mas haveria a necessidade de internação, já que tinha dificuldades em respirar.
CONTINUA…
O FILHO ÚNICO
por Alessandra Valle
Mais um dia de plantão.
Naquele dia, o plantão na "Desaparecidos" não poderia começar mais tumultuado.
Um pai desesperado, seu filho jovem, inteligente, com futuro promissor saiu, não retornou ao lar e não deu notícias.
— Mas ele tinha aula na faculdade e não compareceu — disse o pai, que acreditava ter ciência de todos os passos do filho.
Todos os trâmites para confecção do registro policial de desaparecimento foram iniciados.
Já se passara mais de quinze horas sem notícia do jovem desaparecido.
Pesquisas junto a hospitais públicos foram realizados e o rapaz não havia dado entrada em nenhum nosocômio.
Também não se envolvera em nenhum registro policial, nem como autor, testemunha ou vítima.
O pai cada vez mais angustiado, disse não ter condições de ligar para a esposa a fim de confirmar as vestes do jovem, antes de ele sair de casa.
A mãe do desaparecido já estava dopada, segundo o comunicante do desaparecimento.
O telefone celular do rapaz não completava a chamada, apesar das inúmeras tentativas.
Foi confeccionado um cartaz com a foto e o nome do desaparecido, além de dados importantes a respeito do desaparecimento, como data do fato e o último local onde fora visto.
Os telefones disponibilizados neste cartaz são da delegacia de Polícia, a fim de que as informações sobre o paradeiro do rapaz sejam direcionadas à polícia e que a família seja poupada de ligações trotes ou mesmo pedido de resgates falsos.
O pai andava de um lado para o outro, não conseguia se concentrar nas perguntas direcionadas para formar um perfil do desaparecido.
Toda angústia é sentimento que já presenciei ao longo de mais de uma década como detetive à frente de investigações de desaparecimento de pessoas.
É nesse momento que me pergunto: como devo agir? O que fazer diante de tanta angústia e desespero de um pai que ama seu filho, mas dele não se tem qualquer notícia?
Para que eu não desista e siga sempre confiante eu sempre me interrogo: E SE FOSSE O MEU FILHO?
O atendimento policial que prestava continuou, acolhedor e compassivo.
As diligências prosseguiram e um cadáver com as mesmas características físicas do jovem de que não se tem notícias deu entrada no Instituto Médico Legal.
A perícia necro papiloscópica foi acionada, nos restou aguardar o laudo que confirmou a triste notícia.
O paradeiro do filho único tão amado foi localizado, o pai ficou inconsolável e comoveu a toda equipe de policiais presente.
Essa família poderá se despedir de seu ente querido, viver o luto e procurar equilíbrio para seguir adiante.
Mas e tantas outras investigações de desaparecimento que ainda estão sem conclusão?
É preciso prosseguir, o plantão continua.
NOSSOS COLUNISTAS
Carlos Palmito, Arléte Creazzo e Alessandra Valle.
É um verdadeiro prazer fazer parte da família. No conto que vos mostrei, é uma visão de como na minha cabeça a humanidade acabará, bem, esta é uma de muitas... já a destruí tantas vezes :D um bem haja, e um abraço sincero a todos
Contistas, venham participar! Logo esse caderno também estará cheio. rssss
Parabéns a vallleti Books, por mais este caderno de contos.
Gostei dos contos me trouxe emoção, esperança e principalmente a sensação de se colocar no lugar do próximo.