top of page
Foto do escritorLuiz Primati

CONTOS DE UM FUTURO DISTANTE Nº 18 — 14/06/2022

Alessandra Valle faz questionamentos sobre a liberdade. O que nos faz pensar que manter um pássaro engaiolado é o melhor para ele? E a nossa liberdade? Até onde podemos manter um familiar ao nosso lado contra a sua vontade? Eu, Luiz Primati, trago a sexta e última parte de um conto de 2018, publicado inicialmente no Facebook em partes e depois entrou para o livro: "Velhas Histórias Urbanas" que foi baseado num fato. O nome do conto é "A Emparedada da Rua Nova". Ricardo dos Reis nos traz mais um conto "O Escorpião do Morumbi".


Esse caderno tem a intenção de divertir os nossos leitores que, sempre acabam tirando algum ensinamento para suas vidas.

Leia, Reflita, Comente!



https://www.istockphoto.com/


EM BUSCA DA LIBERDADE


por Alessandra Valle


Cuidei de um pássaro do tipo canário-belga por 19 anos, mas naquela manhã a ave não podia mais cantar, encontrei-o inerte, deitado no chão da gaiola.


Chorei demais, os olhos ficaram inchados. O bichinho era meu amigo e interagia de tal forma que não parecia ser um passarinho.


Mas a verdade é que ele não teve outra opção na vida a não ser meu amigo, pois o condenei à prisão perpétua, onde permaneceu na solitária por quase duas décadas.


Ele não pode se relacionar com outros pássaros, não aprendeu a caçar seu próprio alimento, enquanto eu, mantinha acirrada dependência emocional com ele. Se buscava a liberdade, nunca a conquistou. Triste vida levou meu passarinho, acredito.


Cheguei à Desaparecidos levando comigo o clima do luto pelo qual estava vivendo, mas ninguém merecia quaisquer desses sentimentos, por isso tratei de me alegrar e cumprir meu dever.


Duas mulheres aguardavam atendimento, estavam juntas, mãe e filha. Vieram registrar o desaparecimento do idoso marido e pai, respectivamente.


— Meu pai saiu ontem, pela manhã, para vender passarinho e até agora não voltou. Estamos muito preocupadas — disse a filha.


Após fazer consultas aos bancos de dados disponíveis para polícia, nada encontramos a respeito do paradeiro do idoso.


Ao ser questionada para onde seu marido teria ido, a idosa se limitou a responder que ele fora vender passarinho na favela mais próxima de sua residência.


A filha acrescentou que não conhecia ninguém na comunidade a quem pudesse perguntar sobre o paradeiro de seu pai e manifestou receio de ir até o local, pois a região é dominada por facção criminosa ligada ao tráfico de drogas.


Conhecemos o local apontado como destino daquele idoso e muitos outros desaparecimentos forçados já ocorreram naquela localidade.


Buscamos informações sobre o desaparecido entre denúncias anônimas, mas nada fora registrado.


Pesquisas entre cadáveres não identificados foram realizadas sem sucesso.


Mesmo após a oitiva de vizinhos e comerciantes da região nos dias subsequentes, nenhuma informação relevante fora colhida.


O paradeiro do idoso que saiu para vender passarinho era desconhecido e após seis meses de investigação, não surgira nenhuma prova a respeito de possível crime cometido contra sua vida.


Nesse período, a Desaparecidos firmou parceria com uma concessionária pública a fim de divulgar os cartazes com foto, nome, data e local do desaparecimento de pessoas nas contas mensais enviadas às residências de seus usuários — clientes.


Foi então que postamos o cartaz do idoso desaparecido nas contas tendo milhares de usuários visualizando sua foto e os dados do desaparecimento.


Certa tarde, um homem entrou na Desaparecidos e comunicou ao plantonista que tomou ciência de que estava desaparecido porque seu vizinho lhe mostrou o cartaz na conta que recebera.


— Eu não estou desaparecido, pelo contrário, estou bem vivo. Eu deixei o lar porque não aguento mais minha mulher e meu filho, eles só me dão desgosto e trabalho. Agora que conquistei a aposentadoria, não quero me sentir preso a ninguém e muito menos ficar trancado em casa — disse o idoso aparecido.


Todos os policiais acharam a estória curiosa e queriam saber como o idoso passara o tempo em que ficou sem dar notícias.


— Tratei de vender o passarinho, pegar o dinheiro, passar no banco, sacar mais dinheiro e ir para outro município, recomeçar a vida, livre de tudo o que me fazia sentir triste — narrou o idoso que aparentava ter rejuvenescido.


Quando lhe explicamos sobre a preocupação que seus familiares haviam manifestado e todas as diligências investigativas que realizamos em busca de seu paradeiro, o idoso ficou abalado emocionalmente e garantiu que contactaria a filha, única pessoa pela qual gostaria de manter o vínculo familiar.


Antes de sair da delegacia, o idoso nos fez uma solicitação:


— Não me obriguem a voltar àquela prisão. Olhem como eu estou bem melhor agora.


Não cabe julgar a atitude do idoso, mas ninguém é obrigado a manter relacionamento com outrem, apesar das determinações judiciais que advirão no caso da separação de corpos e do abandono do lar, mas estas extrapolam a esfera policial, pois estão a cargo da justiça.


Se aquele idoso está se sentindo culpado ou não por abandonar seus familiares eu não posso afirmar, mas em mim, ainda persiste grande culpa por aprisionar meu pássaro até hoje.



A EMPAREDADA DA RUA NOVA

por Luiz Primati

CAPÍTULO VI — FINAL


As noites foram ficando cada vez mais estranhas. Pedro Paulo era atormentado todas as noites pela voz de Isabela pedindo para Sabrina respirar que o filho já iria nascer. Ele tinha certeza de que seu neto nascia todas as noites com a ajuda de sua esposa. Poderia pensar estar louco, mas Matheus compartilhava dessa experiência, vivenciando seu drama todas essas noites. Dona Elvira, vez ou outra comentava de ter ouvido as enfermeiras fazendo um parto. Não sabia mais o que fazer. E quando tudo está ruim, ainda pode ficar pior, não é mesmo?


— Exijo falar com Pedro Paulo, agora! — bradou Herculano para Jéssica que, assustada, como sempre, chamou seu patrão.


Ele chegou com a cara de saco cheio. Não aguentava mais o sogro entrar em seu estabelecimento gritando e amedrontando seus funcionários.


— Olá senhor Herculano. Lindo dia para levar frutas e legumes frescos… — Pedro Paulo tentava manter o bom humor.


— Quero que você faça bom proveito dessas frutas e legumes. Estou aqui por Isabela e Sabrina. Onde você as colocou? Para onde as mandou?


— Não estou entendendo. Já disse que elas se separaram de mim em Paris…


— Conversa fiada! Falei com os responsáveis pelo cruzeiro e eles não têm nenhum registro de embarque de minha filha e neta. Apenas o seu nome existe registrado num livro… — falava Herculano chacoalhando a bengala em direção à Pedro Paulo.


— Isso é porque eu registrei as 3 passagens no meu nome — Pedro Paulo pensava rápido.


— Mais uma mentira. Eles só registraram uma passagem. Você está mentindo. Se não quer me contar, talvez queira contar ao delegado.


Herculano saiu dali marchando rápido. Estava decidido. Pedro Paulo, apesar da aparente calma, assim que o sogro sumiu de suas vistas, saiu pelos fundos e foi até onde Matheus cuidava de seus empregados.


— Matheus, você precisa me ajudar — dizia Pedro mais que apavorado.


— O que foi que aconteceu? Está pálido. Sente-se. Vou pegar um copo d’água — disse Matheus ao amigo.


Matheus Serviu um copo grande. Pedro tomou sem respirar.


— Preciso que me ajude a fugir. Herculano descobriu tudo…


— Descobriu? Como? — Matheus não acreditava.


— Sei lá… Ele foi na empresa que cuidou do cruzeiro e não achou o embarque de Isabela e Sabrina. Desconfia de algo.


— Impossível! Planejamos tudo tão direitinho. Foi o plano perfeito. Penso que você está nervoso à toa…


— E as vozes todas as noites? Elas querem vingança…


— E quem disse que são elas? Aquela casa onde você mora tem a fama de ser assombrada há séculos. Vamos manter a calma — falou Matheus.


— Eu não aguento mais. Preciso fugir daqui. Me ajude a sair da cidade... — clamou Pedro Paulo.


— Está bem Pedro. Vou te ajudar. Aconselho a sair de noite. Assim não levantará suspeitas — recomendou o amigo.


— OK, meu amigo. Obrigado mais uma vez.


Os dois se abraçaram. Matheus sabia que Pedro Paulo era fraco e não conseguiria manter a história que combinaram por muito tempo. Melhor seria que Pedro Paulo sumisse.


* * *


Às 20h Matheus chegou em casa. Pedro Paulo já estava com a mala pronta. Aguardava-o ansiosamente.


— Desculpe o atraso. A obra está me dando mais trabalho que imaginava — justificou-se o amigo.


— Tudo bem Matheus. Já estou pronto. Me deixe na rodoviária que vou pegar um ônibus para bem longe daqui.


— Está bem Pedro. Mas tem certeza de que é isso mesmo que quer?


— Tenho sim, Matheus. Pensei muito sobre tudo e essa é a melhor saída — falou Pedro Paulo cabisbaixo.


— Então deixe eu te dar um abraço de despedida aqui mesmo. Lá na rodoviária será melhor que desça rápido do carro e desapareça em seu ônibus. Nem quero saber o seu destino para não cair na tentação de procurá-lo um dia.


— Melhor mesmo — Pedro riu. Os dois se abraçaram.


Desceram as escadas e ganharam o corredor, chegando à porta de entrada. Antes mesmo de tocarem na maçaneta, ouviram uma batida forte.


— Toc, toc, toc. Aqui é a polícia. Abram! — falou uma voz autoritária.


— Meu Deus! Eles chegaram. Já é tarde demais. Estou arruinado — choramingava Pedro Paulo.


— Vamos fazer silêncio. Talvez eles vão embora — disse Matheus.


Nem um minuto se passou e a voz de Herculano foi ouvida.


— Tenho a chave da porta, chefe. Afinal, era a casa de minha filha — abriu a porta.


A polícia entrou e apontou a lanterna para Matheus e Pedro. Herculano bateu a mão no interruptor e a casa se iluminou. Era o chefe de polícia e mais dois soldados.


— Parece que chegamos bem na hora, não é mesmo, chefe? — disse Herculano com ar de satisfação.


— Hora de quê? De um showzinho, sogrinho? — falou Pedro Paulo em tom de gozação, pois foi a única coisa que lhe ocorreu naquele momento.


— Vocês estão indo para algum lugar? — perguntou o chefe de polícia.


— Estávamos sim, senhor policial — disse Matheus, pois a mala na mão de Pedro não poderia dizer o contrário. — Estou levando meu amigo para a rodoviária.


— Eu não disse, chefe? — disse Herculano feliz de ter pego Pedro Paulo no pulo. — Ele estava fugindo.


— Fugindo? Eu? De quê? Estou indo visitar meus pais — disse Pedro tentando manter a calma.


— Receio que terá que adiar a viagem. Precisamos conversar — disse o delegado.


Como sempre dizem: "Não existe algo ruim que ainda não possa piorar", e surge das trevas, dona Elvira.


— Olá senhores. O que está acontecendo por aqui? — perguntou a boa velhinha.


— Receio que seja particular, senhora — disse o chefe de polícia.


— Mas eu ia justamente até o departamento da polícia esta noite. Tenho algo para denunciar — disse dona Elvira.


— Me procure amanhã na delegacia, senhora — disse o chefe.


— Mas o que tenho a denunciar envolve o meu vizinho aqui, Pedro Paulo. — A velha tinha satisfação no olhar.


— Então se sinta convidada a entrar — disse Herculano.


— Eu acho melhor… — O chefe de polícia tentou falar e foi interrompido por Herculano.


— Juarez! Essa senhora está comigo. Prossiga com a investigação — disse Herculano duramente. Pegou gentilmente na mão de dona Elvira e a conduziu para dentro da casa.


Matheus e Pedro, sem ter como fugirem, sugeriram de conversarem no andar de cima, na sala. Todos aceitaram.


Juarez, chefe de polícia local, começou o discurso.


— Senhor Pedro Paulo, o senhor Herculano me procurou hoje alegando que o senhor deu sumiço na sua esposa e filha. Trouxe-me provas substanciais — disse Juarez.


— Impossível! Já lhe disse que Isabela e Sabrina ficaram em Paris…


— Ele me disse isso também. Mas eu tomei a liberdade de contatar a Interpol em busca de Isabela e Sabrina. Eles disseram não ter registro delas pela Europa. Em nenhum país — falou Juarez com segurança de dar medo.


— Eles devem ter se enganado… — falou Pedro em tom de desespero.


— Está dizendo que a polícia internacional não sabe o que diz? — falou Juarez em tom ameaçador.


— Claro que não. Estou dizendo que eles podem ter se confundido…


Nesse momento, surge no ar a voz de Isabela falando com Sabrina.


— Vai Sabrina, força. O bebê já está quase nascendo.


Era uma voz surreal, como se viesse do além. Matheus novamente teve todos os pelos do corpo arrepiados. Dona Elvira não se conteve.


— Olha aí doutor delegado, é a voz que ouço toda noite. É uma mulher fazendo parto de uma garota. Eu sabia que não estava louca…


— Isso deve ser no hospital… é o vento trazendo os sons de lá — Pedro Paulo tentou disfarçar nervosamente.


— Pedro Paulo, nos ajude… — disse a voz de Isabela.


— E as enfermeiras te conhecem Pedro Paulo? Essa voz é de Isabela — disse Herculano num misto de pavor e euforia.


— O som vem daqui... — apontou dona Elvira para uma parede.


— Não há nada aí… — disse Pedro Paulo para lá de apavorado.


As vozes de Isabela e Sabrina continuavam. Matheus não se conteve.


— Chega Pedro Paulo. O jogo acabou — disse cabisbaixo.


— Que jogo Matheus? — falou Pedro desesperado.


Matheus saiu da sala. Em segundos voltou com uma marreta e começou a golpear a parede que dona Elvira tinha apontado. Todos ficaram atônitos e atentos. Pedro Paulo tentou sair, mas Juarez o segurou pelo braço. Pedro Paulo colocou o rosto entre as mãos. Os soldados o vigiavam.


Depois de alguns golpes a parede ruiu. Pelo buraco aberto por Matheus, um cheiro podre, de morte, saiu da fenda recém-aberta. Todos levaram mão ao nariz tentando impedir que o cheiro invadisse os pulmões. Tentativa frustrada.


Mais alguns golpes e um buraco bem grande, do tamanho de uma porta estava aberto. Matheus entrou pelo buraco e acendeu uma luz. Ali estava um banheiro. No chão, dois corpos em putrefação. Herculano deduziu serem de Isabela e Sabrina. As lágrimas brotaram aos olhos. Depois veio a raiva e ele avançou sobre Pedro Paulo que recuou. Juarez o segurou. Herculano desabou no choro sentindo a morte certa da filha e da neta. Já sabia o que acontecera, mas com a prova cabal, tudo ficara mais difícil.


Juarez ordenou que seus soldados levassem Pedro Paulo e Matheus para a delegacia para darem esclarecimentos. Herculano foi conduzido até sua residência. Precisava vivenciar a perda da filha e da neta. Não tinha cabeça para mais nada. Ali, o homem durão chorou como criança.


Na delegacia, já avançando para a madrugada, Juarez pegava o depoimento de Matheus e Pedro Paulo. Como Pedro não parava de chorar, Matheus resolveu contar o que acontecera.


— Chefe, vou contar o que sei. Mas já adianto que nada tive a ver com esses assassinatos…


— Fale homem. A justiça decidirá se é culpado ou não… — disse Juarez friamente.


— Pois bem… Pedro pediu que eu seguisse sua mulher. Desconfiava que ela o estava traindo.


— E estava? — questionou Juarez.


— Sim, chefe. Estava. — Matheus fez uma pausa, olhou para Pedro e continuou. — Depois que contei para Pedro sobre a traição, ele ficou muito nervoso e prometeu não fazer nada. Mas no dia seguinte, quando confrontou Isabela, ela confessou os encontros às escondidas com o namorado da filha e ainda chamou Pedro de broxa.


— Você a ouviu dizer isso?


— Não senhor delegado.


— Por favor, prossiga.


— Pois bem, tomado pelo ódio e por não aceitar a zombaria da esposa, Pedro pegou uma faca na cozinha e a golpeou no banheiro. Sabrina, ouvindo os gritos, foi ao encontro da mãe. Pedro, ainda tomado de ódio, esfaqueou Sabrina a culpando de ser o pivô de toda aquela situação. Foi um descontrole momentâneo.


— E como sabe de tudo isso? — questionou Juarez.


— Já disse. Pedro me contou — fizeram uma pequena pausa. Matheus tomou um gole de água e continuou. — Depois Pedro me contatou. Disse precisar de ajuda. Eu fui ao seu encontro imediatamente e quando vi a cena fiquei consternado. Não sabia o que fazer.


— Mas você fez algo? — perguntou Juarez. Pedro ainda soluçava num canto da sala de interrogatório.


— O que mais eu poderia fazer? Pensei que poderíamos ocultar os corpos. Enrolamos Isabela e Sabrina com gazes. Depois eu construí uma parede de tijolos. Cimentei, dei acabamento e pintei. Pensei que ninguém desconfiaria que ali havia um banheiro. O convenci a viajar às pressas para a Europa até as coisas esfriarem.


— Meus parabéns, senhor Matheus. Ótima ideia. Pena que foi para o mal — disse Juarez em tom de julgamento.


— Mas sou inocente. Foi Pedro que cometeu os assassinatos — defendeu-se Matheus.


— Sim. Foi Pedro Paulo. Mas você será enquadrado como cúmplice de assassinato e ocultação de cadáver. Isso deve dar uns 16 anos de prisão.


— Seu delegado, eu só ajudei um amigo desesperado…


— Se tiver sorte e um bom advogado, poderá cumprir 5 anos e sair em 3 por bom comportamento. Agora você, Pedro Paulo, não vejo nada menos do que 30 anos atrás das grades por duplo homicídio e ocultação de cadáver.


Pedro nada falava. Apenas levava as mãos ao rosto e chorava. Matheus chegava a sentir pena do amigo, mas estavam no mesmo barco agora.


— Soldado, leve esses dois para a cela. Já está tarde. Amanhã será sua vez de depor, Pedro Paulo. Descanse bem.


Os dois soldados levaram Matheus e Pedro, algemados, para uma cela no fundo da delegacia. Ficaram isolados dos outros presos até que concluíssem o inquérito. Na cela, Pedro Paulo só tinha Matheus para se consolar.


— Matheus, me desculpe envolvê-lo nesses crimes. Vou confessar tudo e dizer que não teve nada a ver com isso. Sairá livre.


— Ah, tá. Acredita que é assim simples? Não ouviu o delegado dizendo os crimes todos que cometi te ajudando? Você poderia ter mantido a cabeça fria e nada disso teria acontecido.


— Eu fui fraco, Matheus. Só queria ter tido tempo de me despedir de Bela e Sabrina… — Pedro Paulo chorava com arrependimento na voz. Tarde demais.


— Me desculpe amigo dizer isso, mas “a morte não permite despedidas”. Terá que carregar esse fardo pelo resto de sua eternidade.


* * *


Os meses se passaram. Veio o julgamento. Pedro Paulo pegou prisão perpétua. Matheus, 13 anos. Mas pensava que sairia com cinco. Pelo menos ainda teria chance de reconstruir a vida. Quanto à Pedro Paulo, só lhe restou escutar as vozes de Isabela e Sabrina todas as noites. O filho nascendo e Isabela fazendo o parto. Dizem que Pedro Paulo não aguentou, se enforcando na cela onde apodrecia. Foi no mesmo dia em que Matheus ganhou a liberdade.


Moradores de Recife e até mesmo alguns visitantes, afirmam que, ao passarem pela Rua Nova depois das 21h, ouvem as vozes de Isabela e Sabrina. Lenda ou não, difícil contestar. Pode ser apenas o vento soprando entre os prédios.


Algumas pessoas juram que essa história é verídica. Outras afirmam que foi um jornalista local que inventou tudo para vender exemplares aos domingos. Quem saberia a verdade?


FIM




O ESCORPIÃO DO MORUMBI

por Dos Reis

Após o disparo de um tiro, Karina ficou de vigília à cabeceira da janela, puxando para cima o canto da cortina para olhar a rua, estava acostuma com isso, mas a precaução era um remédio que sempre estava em seu caminho. Durante todo o dia. Durante toda a noite. Sentia-se confortável em um condomínio de luxo, onde teoricamente tinha de tudo. Onde podia viver tranquilamente até que um dia alguém viesse para recolher seu corpo em sua vergonha e assim enterrasse sua vida, com segurança reforçada.


Seria a luz da janela a primeira a desaparecer com a noite? Onde estava o marido até essa hora? Começou a pensar. Depois de um tempo notou que havia um pequeno animal na persiana. Seria uma barata? Ela odiava barata, mas ao contrário do senso comum não iria se esconder daquele inseto nojento. Nem iria dividir com ele aquele espaço. Pegou um chinelo de dedos e avançou em sua direção.


― Vamos, onde está você?


A casa pertencia a ela e não ao inseto. Hesitou um instante, o suficiente para o animalzinho desaparecer de sua vista. A noite caía sobre a janela e ela se sentou na cama. Seu pensamento estava fora, em algum lugar, e ela estava lá, com aquele inseto, ou sei lá o quê. Ela tinha um quadro lindo na parede onde ostentava seu diploma em Ciências Biológicas.


―Dessa vez não será necessário usar a violência ― falou alto para si mesma.


Era só ela e o animal, uma mistura de medo e civilidade que a acompanhava desde a faculdade. Lembrou de seu juramento:


“Juro, pela minha fé, pela minha honra e de acordo com os princípios éticos do biólogo, exercer as minhas atividades profissionais com honestidade, em defesa da vida, estimulando o desenvolvimento científico, tecnológico e humanístico, com justiça e paz.”.


― Eu sou lunática? Não. Quando irei perder esse medo?


Aparentemente nunca.


― Será que Deus vai me perdoar? Não. Deus vê tudo, inclusive as intenções.


E quando estava imersa em suas crenças, cheia de remorsos e angústias, o bicho apareceu e para sua surpresa não se tratava de uma barata.


― Uuuh... que lindo...


Neste dia, quase perto do fim, sentia cada batida de seu coração mais forte, como um alarme vibratório estimulando suas sinapses.


Ela deveria esmagar aquele animal, sem piedade. Mas passou a conversar com seu pequeno visitante.


― Você é um artrópode. Foi um dos primeiros a habitar a terra. Quanto privilégio você ter vindo me visitar.


Presa em sua paranoia acadêmica, induzida por sedativos, começou a pensar no animal como um emissário de Deus.


― Quer passar a noite aqui? Você é uma criatura divina, todos nós somos.


Sem executar a sua vingança sobre aquele animal que, inicialmente, lhe assustou. Decidiu abrir uma trégua até que o dia clareasse novamente.


― Amanhã você terá sua liberdade.


Pegou uma caixa de sapato e acomodou o pequeno animal, que media entre dez e doze centímetros. Comida não seria o problema, esse tipo de animal consegue ficar até um ano sem alimento, um dia não era nada. Dessa forma, ela poderia dizer-lhe o quanto se importava com a natureza, embora estivesse presa naquele apartamento. É claro que havia insetos e outros pequenos bichos pela casa com os quais aquele pequenino escorpião poderia realizar um verdadeiro banquete, mas sem regalias nessa noite. Também os outros eram animais inocentes.


Ela tomou as medidas necessárias para o conforto do pequeno visitante, depois andou pela casa sem saber o que diria ao marido, caso ele perguntasse alguma coisa. Ensaiou alguns apelos naturalistas lá fora, na sacada do prédio, sentada no degrau que separava o ambiente. Seus olhos, seu coração, suas veias pulsavam de alegria contra o silêncio da noite.

Ela poderia colocar o bicho em seus braços, se o marido dissesse algo, e, de cabeça erguida, sair, solenemente, para levar-lhe até a natureza, para o pequeno terreno descampado que avizinhava o condomínio, para os muros, para o que restava do mundo. E então, sempre que quisesse, com o rosto doce e mágico, aparecer e apanhá-lo, e levá-lo para visitá-la outra vez, em sua casa segura e feliz. Ela tinha tudo planejado.


Então o marido chegou, cansado e sem motivação.


― O que é isso?


― Um escorpião.


― Onde comprou?


― Não comprei, ele apareceu por aqui.


― Pelo amor de Deus, joga isso fora. Não podemos dormir com um bicho como esse por aqui.


Uma mistura de luzes vinda da rua surgiu pela janela, fraca, quase dissolvente. Ela esperava um propósito para realizar seu plano, quem sabe toda aquela indiferença servisse. Armou-se como se fosse dizer alguma coisa, mas animou-se, pegou a caixa com o escorpião e disse ao marido.


― Espere um minuto, eu já volto.


― Onde vai?


― Jogá-lo lá fora.


― Antes é preciso matá-lo. Me dá aqui, eu faço isso. Você não seria capaz.


― Nada disso. Eu garanto que irei matá-lo, não aqui, lá fora.


― Tudo bem, vou tomar banho.


E ela saiu, foi para o outro lado da rua. Abriu a caixa onde o pequeno animalzinho parecia dormir. Ela, carinhosamente, pegou-o com as mãos e o colocou em seu ombro, diante de um muro sem reboco e malcuidado, tomado por um mato alto que invadia suas frestas. Dali bastava ele ganhar o muro e voltar à sua vida. Mas o animalzinho não se moveu. Ela imaginou que ele não queria abandonar sua vida.


― Vamos, meu querido ― ela sussurrou com um contentamento nos lábios.


O escorpião podia partir a qualquer hora, a qualquer minuto, agora... então ela sentiu sua ferroada. Seus olhos embaçaram e nem por isso ela perdeu o sorriso, nunca contestou a lei da natureza. Tudo era exatamente como ela imaginava.




FIM




NOSSOS COLUNISTAS


Luiz Primati, Alessandra Valle e Ricardo dos Reis.

30 visualizações4 comentários

Posts recentes

Ver tudo

4 Comments


sidneicapella
sidneicapella
Jun 16, 2022

Muito bom!

Parabéns! Alessandra, Luiz e Ricardo.

Like

Stella Gaspar
Stella Gaspar
Jun 15, 2022

Olá, excelentes contistas. Os escutei e amei suas interpretações. 😍Cada palavra aqui escrita, me faz olhar para um mundo de imaginações!!!

Like

Alessandra Valle
Alessandra Valle
Jun 15, 2022

A sintonia nos uniu. Fazemos parte da família Valletibooks.

Não percam a leitura dos contos desta edição.

Like

Luiz Primati
Luiz Primati
Jun 14, 2022

Contos intrigantes, que prendem nossa atenção. Alessandra e o seu pássaro aprisionado, Ricardo e seu escorpião. Será que esses escritores combinaram de falar em animais? Não importa. O que não podemos é deixar de ouvi-los no Podcast.

Like
bottom of page