O plantão de Alessandra Valle nos traz um caso triste de desaparecimento e nos revela o quão incapaz é a polícia diante das negativas da justiça. Eu, Luiz Primati, trago a segunda parte de um conto de 2018, publicado inicialmente no Facebook em partes e depois entrou para o livro: "Velhas Histórias Urbanas" que foi baseado num fato. O nome do conto é "Bernadete e seus outros 'EUS'". Sidnei Capella traz a parte final do conto: "Uma porta fecha e dez portas abrem". Paulo Brito nos traz o conto: "O que é o amor agora?".
Esse caderno tem a intenção de divertir os nossos leitores que, sempre acabam tirando algum ensinamento para suas vidas.
Leia, Reflita, Comente!
RETENDO NO INCONSCIENTE
por Alessandra Valle
Era feriado universal, Dia Mundial da Paz, parte da família estava reunida para festejar meu aniversário. Eu e minhas irmãs estávamos saudosas, queríamos ver fotos antigas e relembrar o passado. Meus álbuns de fotos serviram para que as lembranças ganhassem vida, cor, cheiro e cotas de afeto. Ao som de risadas, encontramos fotos da minha pré-adolescência e fora incentivada a ser modelo e manequim. Essas fotos passaram de mão em mão e os comentários foram em tom de deboche e ironia. Enquanto elas praticavam bullying, eu buscava ignorar, pelo menos para o meu consciente. "Vai saber o que reterei sobre esse assunto no meu inconsciente?" Me questionava enquanto fingia coadunar com os risos.
Dia seguinte, mais um plantão na "Desaparecidos". Nessa época, estava responsável por investigações antigas, das quais não foram obtidos resultados satisfatórios, ou seja, as pessoas permaneciam desaparecidas. Mais uma investigação seria reaberta naquela manhã. Tratava-se do desaparecimento de uma adolescente, ocorrido no ano de 2007. No dia de seu desaparecimento, a menor regressava ao lar, na companhia da tia. Estavam se deslocando de transporte coletivo quando um homem se apresentou como "caça-talentos" e foi logo passando seu número de telefone para contato, pois estava imaginando um futuro promissor à adolescente junto às passarelas da moda e aos canais televisivos. Ele prometeu agenciar a adolescente e a apresentá-la ao mundo da moda. A tia desconfiou da atitude e do interesse do homem, mas ao invés de jogar fora o cartão do sujeito, guardou-o. Na mesma semana, a jovem deixou a prima na escola e em seguida, desapareceu levando consigo o cartão do suposto agenciador de modelos. Pelo fato de a tia não recordar o nome do suspeito, até aquele momento, ele não fora identificado. "A tecnologia avançou, bancos de dados ficaram disponíveis e o acesso à informação também." — pensei enquanto me logava no sistema da polícia civil. Reli minuciosamente todas as informações constantes na investigação desde seu início. Após, elaborei um relatório com aquelas que seriam úteis na identificação do suspeito. Algumas consultas e pronto, obtive êxito quanto à identidade do suspeito, bastava a testemunha reconhecê-lo. A tia da desaparecida fora chamada e a foto lhe foi apresentada. — Sem dúvida, é ele — disse a comunicante enquanto chorava. A autoridade policial determinou a expedição do mandado de intimação do suspeito, afim e que ele pudesse ser interrogado. Diligenciamos à residência do suposto agenciador de modelos, mas ele não estava em casa e nenhum vizinho soube informar onde poderíamos encontrá-lo. Voltamos mais duas vezes e a situação se repetiu. Fizemos uma operação policial e montamos campana à frente da casa do suspeito, mas ele não abriu a porta e fingiu que não estava em casa. Não pudemos arrombar a porta, nem mesmo adentrar ao quintal, pois a justiça não havia concedido o pedido de busca e apreensão em sua residência, sob a alegação de que contra ele não havia fundada suspeita.
Inúmeros mandados de intimação foram expedidos, muitos deles foram entregues pelos Correios, por carta registrada, mas o homem nunca compareceu para depor.
Descobri que o sujeito era pai e entrei em contato com seus filhos, mas estes romperam relações afetivas há anos, desde que o pai provocou um escândalo na área social do condomínio onde residiam ao se masturbar diante de uma criança autista.
Outros familiares, apenas lhe restava a mãe, senhora muito idosa, debilitada fisicamente, que ao contato se mostrou agressiva e enalteceu a idoneidade do filho.
Cada vez estava mais difícil produzir provas, decorrido mais de 10 anos do fato do desaparecimento da jovem que sonhava em ser modelo.
Não era mais possível solicitar quebra de sigilo telefônico do suspeito à justiça, nem mesmo a pesquisa no sistema da polícia nos assinalou algum corpo não identificado do sexo feminino com as características físicas da desaparecida.
Essa investigação prosseguiu sob responsabilidade de outros colegas da “Desaparecidos”, enquanto precisei me dedicar a outros setores da delegacia. Certo dia, atendi ao chamado telefônico de uma assistente social de um hospital público, solicitando-nos pesquisa por referências familiares de um paciente em estado grave devido complicações decorrentes da infecção viral por Covid19. Ao consultar os dados do paciente tive a atenção desperta e confirmei que se tratava do suspeito do desaparecimento da adolescente sonhadora e imediatamente, expliquei a situação que o vinculava ao inquérito policial de desaparecimento de pessoa.
A equipe médica, com aval da direção do hospital, autorizou que uma dupla de policiais pudesse interrogar o suspeito e assegurou que as medidas de segurança nos fossem garantidas. Finalmente, o interrogatório do suspeito seria realizado, porém, o encontramos moribundo no leito hospitalar. Apesar da condição de doente, lhe fizemos todas as perguntas pertinentes e necessárias, mas nenhuma palavra foi por ele proferida.
A única reação emocional esboçada pelo mortiço foi o choro fingido ao mostramos a foto da jovem desaparecida e lhe questionarmos onde escondera seu corpo.
Saímos do hospital sem qualquer palavra que pudesse incriminar aquele homem, tínhamos contra ele um estupro pelo qual respondia criminalmente em liberdade e um atentado violento ao pudor que não encontra mais amparo legal no código penal brasileiro.
Dias depois, fui comunicada pelo hospital público a respeito do falecimento do suspeito e que nem mesmo seus filhos foram sepultá-lo.
"Vai saber o que reterei sobre esse assunto no meu inconsciente?" — questionei-me enquanto fingia condolências.
BERNADETE E SEUS OUTROS "EUS"
por Luiz Primati
IG: @luizprimati
CAPÍTULO II — ONDE ESTÁ HELEN?
Dia 26 de outubro, 10h da manhã. Paciente: Desconhecida.
— Vamos entrando senhorita…
— Bernadete! Pode me chamar de Ber se preferir — disse a mulher na porta do consultório com seu cão guia. Era mais uma personalidade de Helen, sem dúvida alguma.
Karen guiou Bernadete até o divã. Ela sentou-se com as pernas juntas. Cabelo arrumado, roupas modernas, porém discretas. Sapato fino, vestido justo. Um grande cinto circundava sua cintura. Os óculos escuros eram sofisticados, o batom discreto. Na orelha brincos pequenos, quase invisíveis.
— Suponho que Helen não pode vir hoje…
— Não foi isso minha cara. Helen queria vir sim. Eu pedi para vir no lugar dela. Precisava falar com a Dra. sobre minha irmã. Tive que arrumar um substituto para o meu trabalho — estranhou Karen. Não sabia que Mirtes, ou seja, lá quem fosse, tivesse um emprego.
— Fique à vontade. Temos um bom tempo para desfrutar da companhia uma da outra — disse Karen querendo criar intimidade.
— Vamos falar de Helen — fez uma pausa dramática enquanto tirava as luvas e as colocava sobre o divã. — A minha irmã tem um problema sério. Ela se recusa a fazer o tratamento que o Dr. Klaus recomendou.
— Você tem alguma carta de recomendação do Dr. Klaus?
— Tenho sim, mas ficou com Helen. Na próxima sessão eu trago. Mas posso lhe adiantar o seu diagnóstico. Helen sofre de transtorno bipolar.
— A indicação à minha pessoa foi do Dr. Klaus? Que bom saber!
— Sinto desapontá-la Dra. Karen. Na verdade, ele apenas recomendou o seu nome dentre outros mais. O importante, disse ele, é que Helen procurasse ajuda psiquiátrica. Helen a escolheu, pois, não se sentiria à vontade fazendo terapia com um homem. Acho que a Dra. compreende… mas isso não importa, não é mesmo? Minha irmã é o foco aqui.
— Entendo senhorita Bernadete. Mas não posso tratar uma paciente à distância. Preciso que ela venha aqui e preciso da carta de recomendação.
— Concordo plenamente por isso estou aqui. Precisamos achar uma maneira de trazer minha irmã para o tratamento.
— E o que exatamente sua irmã tem? Quero dizer, como ela age? Como é essa bipolaridade? Por que se recusa a fazer o tratamento?
— Hei, hei. Calma aí Karen. Posso te chamar de Karen, não é mesmo? — A Dra. assentiu com a cabeça. — Sei que tem muitas dúvidas, nós também temos, e precisamos de sua ajuda.
— Estou aqui para ajudá-las. Todas vocês.
— Acho que ainda não entendeu. Quem precisa de ajuda é Helen. Nós todas estamos bem.
— Está certo Bernadete. Então tenho que anotar alguns dados. Se o conselho de psiquiatria vier me fiscalizar, tenho que ter os dados de meus pacientes. E mesmo que você não seja minha paciente a estou atendendo nesse momento. Espero que compreenda.
Bernadete assentiu com a cabeça, mas sua face revelava que não estava nem um pouco confortável com isso.
— Seu nome completo?
— Bernadete Troisman.
— Tem um documento para eu anotar corretamente?
Bernadete pegou o documento na bolsa, tateando no local que sabia onde ficava. Entregou para Karen.
— Vamos ver… você tem 33 anos… nascida aqui mesmo em Munique… mas me diga, qual a causa de sua cegueira?
— Os médicos me diagnosticaram como cegueira cortical. Foi devido a um acidente. Confesso que não me lembro. Meus amigos me contaram que foi um acidente e não deram mais detalhes. Os médicos sempre me dizem ser melhor não saber.
— Certo! E as suas irmãs? Elas também estavam nesse acidente? Digo, ficaram cegas com você?
— Minhas irmãs não são cegas. Isso é uma espécie de brincadeira, Dra. Karen? — Bernadete se levantou furiosa, querendo ir embora. Karen levantou e esticou as mãos tentando contê-la.
— Tenha calma senhorita Bernadete. Eu… eu… só pensava que elas eram cegas. Me desculpe. Não sabia. — Bernadete se acalmou e voltou a se sentar. Karen respirou aliviada. Quase que seu grande caso fora embora e ela perdera a chance de estudá-lo. Por hora conseguira reverter.
— Será que todas as perguntas sobre a minha pessoa já foram respondidas? Podemos voltar a falar de Helen?
— Claro que sim. Podemos.
— Então está resolvido. Semana que vem tentarei trazer a Helen — disse isso e se levantou. Pegou as luvas, calçou-as e procurou pelo seu cão guia.
— Mas já? Ainda temos mais 10 minutos.
— Receio que nossa conversa acabou. Ainda tenho que visitar meus alunos.
— Alunos?
— Sim! Não lhe contei? Sou diretora de um colégio. Hoje deixei um substituto para poder vir à consulta.
Karen ajudou Bernadete a sair dali. Na porta, antes de sair, voltou a falar.
— Durante a semana que vem eu ligarei marcando o dia da sessão da Helen. Tome aqui o seu dinheiro.
— Se quiser pode me pagar mensalmente — disse Karen querendo agradar e criar um motivo para Bernadete voltar.
— Prefiro pagar agora. Não sei como será quando eu atravessar a esquina, não é mesmo? Até mais senhorita Karen.
— Até logo!
Karen viu Bernadete ir. Pelo menos agora tinha um nome real da paciente. Também já sabia que ela sofria e quem a recomendara. Ficou tão excitada que nem viu o dia passar. As coisas estavam melhorando para ela. Sua carreira poderia deslanchar com um artigo científico na revista “The International Journal of Psychoanalysis”. Seria o máximo.
* * *
Karen passou mais um final de semana estudando o caso de Bernadete. A cegueira poderia ter sido causada por evento traumático que Bernadete descreveu como “acidente”. Para proteger a pessoa do evento, o cérebro a faz esquecer de como tudo ocorreu. Isso é normal. Karen apenas queria saber mais sobre as múltiplas personalidades. Conhecia o Dr. Klaus e poderia pedir a sua ajuda. Antes, porém, precisava coletar mais informações. Com apenas 3 sessões seria precipitado de sua parte trocar informações. Esperaria mais algumas semanas.
Como costumeiramente acontecia, Helen ligou e marcou novamente a consulta.
Quarta – 31 de outubro, 10h da manhã. Paciente: Desconhecida
Karen se assustou quando abriu a porta. Entrou correndo um adolescente de boné, jeans, tênis de cores berrantes. Foi entrando e mexendo nas coisas pelo consultório. A Dra. se assustou, olhou para fora para ver se o garoto estava com mais alguém. Ninguém havia do lado de fora.
— Hei, garoto, aqui é um consultório médico. Não pode ir entrando dessa maneira. Quer fazer o favor de se retirar antes que eu chame a polícia? — falou Karen apavorada e, ao mesmo tempo, furiosa.
— Relaxa aí Dra. que não vou lhe fazer mal algum. — Disse o garoto sem se importar em olhar para Karen.
— Estou falando sério… — ameaçou.
— Me chamo Peter. Prazer! — esticou a mão em direção à Karen.
Karen não quis dar a mão ao garoto. Ainda estava assustada.
— Suponho que começamos mal. Deixe-me apresentar. Meu nome é Peter e vim na consulta que Helen marcou. Posso sentar aí nesse troço? Como é mesmo o nome?
Nesse momento caiu a ficha de Karen. Era uma das personalidades de Helen. Percebeu a semelhança física. Mas o que a intrigava é que Peter, essa nova personalidade, podia ver. Como poderia isso? Será que elas estavam fingindo o tempo todo?
— Divã. Se chama divã. E, sim, pode se sentar.
Peter se jogou no móvel. Karen até pensou que poderia quebrá-lo.
— E aí Dra. Karen? Vamos começar? Tenho que encontrar a galera depois do nosso papo.
— Claro, claro. Fique à vontade. — Peter já estava, pois, se deitara no divã e olhava tudo em volta. — Pode me dizer o que aconteceu que Helen não veio?
— Helen? Aquela chata da minhã irmã nunca faz nada. Ela disse ser eu que tinha que vir aqui conversar com você. Para falar a verdade nem sei o motivo. — Peter fez uma pausa pegando uma das revistas que ficava num cachepô ao lado do divã. Leu os títulos das matérias em voz alta. “Anonimato e racismo”. “Você concorda comigo ou eu te odeio”. Sério isso? Essa última matéria, Helen deveria ler.
— Por que diz isso? Explique melhor.
— Não tenho muito o que explicar não. Helen é desse tipo. Se a gente não fizer o que ela quer, fica enfurecida.
— Enfurecida como? O que ela faz?
— Ela não te contou como é possessiva, metódica? Se eu não venho aqui hoje, ela me prende no quarto a semana toda. Não me deixa ver a galera.
— Interessante… — falou Karen em tom baixo e anotando em seu bloco de notas num tablet.
— O que a senhora está anotando aí? É sobre o que falei? — Peter tentava ler o que Karen tinha escrito.
— Dra. Karen. Me chame de Dra. Karen, por favor.
— OK! Dra. Karen… — falou em tom de gozação.
— Preciso anotar alguns dados sobre você. Qual sua idade, seu nome completo, sexo, endereço?
— Hei, hei. Devagar.
— Desculpe.
— Me chamo Peter. Só Peter. Tenho 18 anos. Sexo só de vez em quando… — riu da piada.
— Quis dizer se é menino ou menina…
— Tá me zoando, né? Não está vendo que sou homem? E muito homem por sinal.
— Me desculpe. Continue.
— Endereço não sei direito não. Fica lá perto do zoológico. A pé levei quase uma hora. De bike eu levaria uns 15 minutos, mas Helen não me deixou vir com ela. Disse ser perigoso e que não teria onde deixá-la durante a consulta.
— Claro que tem. Pode deixar aqui no consultório. Arrumamos um lugar.
— Beleza. Da próxima vez em venho com ela.
— Agora vamos falar sobre Helen…
— Sério? Humpf!
— Peter, se preferir, fale você.
— Falar o que de mim? — Karen não respondeu. Apenas continuou olhando para Peter. — Sei lá… Gosto de sair com meus amigos, gosto de games, curto uma balada. Não gosto muito de estudar, mas vou algumas vezes, senão Helen briga comigo. — Olhou para Karen esperando que estivesse satisfeita. Ela continuou o fitando. — Está bom assim? Podemos terminar?
— Ainda não. Quero saber agora sobre as suas outras irmãs… Todas elas enxergam como você? Quero dizer, algumas delas tem problema na visão?
— Irmãs? Que irmãs? Lá em casa é só eu e a Helen. Não tenho irmãs não. A não ser que meu pai tenha aprontado por aí e eu não saiba — riu longamente.
— Estranho… eu tinha entendido Helen dizer que vocês eram em vários irmãos e irmãs. — Karen apenas jogou a isca.
— Dra. Karen, acho que deve estar confundindo a Helen, minha irmã, com outra Helen.
— Pode ser sim. Me desculpe Peter — disfarçou Karen.
Peter olhou para o relógio e já eram quase 11h da manhã. Sabia ser hora de ir, senão perderia o lanche com os amigos. Bateu as mãos nos joelhos e se pôs de pé rapidamente.
— Dra. Karen, vou nessa. Ainda tenho uma longa caminhada pela frente.
Karen se levantou a contragosto. Por ela, ficariam horas falando. Mas as personalidades de Helen pareciam não gostar de falar.
— Helen mandou te entregar isso — deu a nota de 50 euros para ela e se dirigiu para a porta.
— Nos encontramos na semana que vem? — perguntou Karen já sabendo da resposta.
— Quem? Eu e você? Só se for para curtir uma balada… — riu e saiu pela porta, ganhando a rua num instante.
Mais uma das personalidades de Helen estava indo embora. Karen ficava cada vez mais envolvida. Era excitante demais tratar de um caso tão complexo. Peter, uma personalidade masculina e que enxergava. Será que as outras personalidades se fingiam de cega? Era um fato novo a visão de Peter e teria que estudar mais a fundo.
* * *
Karen terminou de rever suas anotações e relembrar as sessões anteriores. Já estava quase na hora de Mirtes chegar. Isto é, Karen julgava que hoje seria Mirtes. Afinal já foram 4 personalidades: Mirtes, Sharon, Bernadete e Peter. Teria mais? Ou agora seria hora de Mirtes novamente? Karen apostava em Mirtes. A única certeza que tinha era que o nome verdadeiro das personalidades que a visitaram era Bernadete Troisman. As outras poderiam ter que nomes quisessem. Uma dúvida a mais permeou a cabeça de Karen: “Helen seria uma das personalidades ou seria outra pessoa realmente?”.
Terça – 6 de novembro, 9:00h da manhã. Paciente: Desconhecida.
Costumeiramente a paciente chegou na hora combinada. Karen a recebeu na porta de seu consultório. Ali no centro, tudo era muito caro. O consultório de Karen era composto apenas de uma sala. Não tinha sala de espera. Era um problema. Por esse motivo não marcava uma sessão próxima à outra, para não criar o constrangimento de fazer a paciente esperar na rua. Já tinha visto espaços maiores e isso custaria o dobro do valor que pagava hoje. Seu pai ofereceu de ajudar, ela, entretanto, não aceitou.
— Pode entrar por aqui. Deixe que te ajudo.
Novamente era uma das personalidades cegas de Helen. A guiou até o divã e seu cão guia ao seu lado. Karen estava curiosa para saber quem estava ali hoje e logo foi arriscando alguns palpites.
— Você é Helen, acertei?
— Não!
— Mirtes, me desculpe!
— Também não. Acredito que nunca nos vimos. Meu nome é Camile. Mirtes e Helen são minhas irmãs.
— Camile… Que nome exótico… — disse Karen.
— Exótico e sofisticado — disse a nova personalidade. Bem vestida, elegante, clássica. Cabelo preso num coque, batom claro, unhas bem-feitas. A bolsa era de grife.
— Gostaria de saber alguns dados sobre você. Seria possível me dizer?
— Claro minha cara. Com todo prazer. O que gostaria de saber? — disse Camile amavelmente.
— Começaremos pela sua idade, profissão e sintomas.
— Minha idade? Sabe que não é nada elegante perguntar a idade de uma dama. Poderia me denunciar — riu. — Mas é claro que, entre nós, não deverá haver segredo. — Karen pegou seu tablet para anotar. Camile aguardou e depois continuou. — Tenho 42 anos, sou viúva, minha profissão era “do lar”. Nunca precisei trabalhar, sabe? Casei-me muito cedo, marido bem conhecido na sociedade. Mas infelizmente ele faleceu precocemente. Cerca de 4 anos atrás uma pancreatite o levou. Mas isso eu sempre dizia a ele. Se continuar comendo desregradamente não sobreviverá. Dito e feito. A gordura visceral é traiçoeira. Eu, pelo contrário, sou esbelta, me alimento corretamente…
— Sinto muito pelo seu marido…
— Não sinta minha cara. Meu marido, com aquela pança toda já não queria mais fazer sexo. Eu não era feliz. Agora sim, posso me satisfazer com meus namorados.
— Hum, você tem namorados? São muitos? — Perguntou Karen querendo instigar.
— Aí que vergonha. Penso que não me expliquei corretamente. Tenho um de cada vez, é claro. Não sou promíscua como Madeleine.
— Madeleine? Essa eu não conheço. É sua irmã?
— Sim, infelizmente. Helen vive brigando com ela por levar homens toda semana para casa. E cada dia é um diferente. Já teve dias que levou dois de uma vez. Um horror. Um dia ela vai contrair uma doença venérea.
— E o por que você veio fazer essa sessão hoje? Veio no lugar de Helen?
— Claro que não! Gosto de sair, fazer novos amigos. Se dependesse de Helen ficaria trancafiada no quarto a vida toda. Ela quer que sejamos como ela. Mas sou diferente.
Karen anotava tudo. Camile, ao contrário das outras personalidades, gostava de falar e não escondia nenhuma informação. Estavam tendo progresso. Isso era importante.
Falaram por muito tempo, quase 1:30h. Karen nem se importou pelo horário ter se estendido. Quando Camile se foi Karen teve a certeza de que tinha em suas mãos um dos casos mais intrigantes já vistos. Precisava compartilhar informações com o Dr. Klaus e saber um pouco mais de Helen, Bernadete, Camile e todas as outras. No tempo em que conversaram, por diversas vezes Karen movimentou as mãos na frente do rosto de Camile, a olhou de perto, tudo para ter certeza de que ela realmente era cega e tirou suas conclusões: ou ela fingia bem demais que era cega, ou as personalidades podiam alternar entre a luz e a escuridão. Era deveras intrigante. Dr. Klaus realmente poderia ajudar.
Continua...
UMA PORTA FECHA, DEZ PORTAS ABREM
por Sidnei Capella
IG: @capsidnei
Naquela manhã o sol estralava e ardia a pele a queimar, tomou o café matinal, pegou a refeição do almoço que, D. Beatriz, preparava todas as noites, Lilian foi para a garagem, limpou o banco da bicicleta. Era uma rotina diária que, mesmo atrasada, o ritual era repetido diariamente.
Lilian era uma jovem de vinte anos, morena de olhos verde adorava desfilar pelas ruas com o belo corpo atlético, trabalhava durante o dia na função de escriturária em um escritório de contabilidade. O salário mal dava para pagar a faculdade de educação física, sobrando pequena parte do dinheiro destinando para ajudar a sua mãe D. Beatriz com os gastos da casa, gastava o mínimo possível com entretenimentos, um deles era para ir ao cinema pelo menos uma vez por mês. Naquela manhã ensolarada, a garota mal sabia que, um acidente mudaria a sua vida.
Lilian era uma jovem sonhadora, mulher alegre e descontraída, com uma gana gigantesca em dar-se bem profissionalmente, adorava ser paquerada e, sempre quando tinha tempo, estava na praia com os amigos, praticando surfe.
Ereta e imponente subiu na bicicleta, expondo o corpo e mostrando as belas curvas, arrumou a refeição que a sua mãe havia preparado, no cesto a frente do guidão da bicicleta e, iniciou suaves pedaladas a caminho do trabalho. O trajeto rotineiro era pela faixa liberada para ciclistas ao lado da orla da praia de Candabu, Lilian trabalhava em uma das travessas da Avenida Candabu.
Pela manhã, pedalando a caminho do trabalho, com o vento ainda fresco da brisa do mar resvalava no rosto, cantava um “reggae” brasileiro, estava sentindo-se a mais livre das gaivotas a voar, abria os braços como sinal de paz.
Com o pensamento na bela música que cantava, em um estalo, lembrou da tarefa urgente que o patrão, dono do escritório de contabilidade, havia designado para a garota executar.
Chegando próximo ao local de trabalho, Lilian parou a bicicleta na faixa de travessia da ciclofaixa esperando o farol sinalizar a passagem de pedestres e ciclistas.
Era uma manhã de movimento dobrado, pois, tratava-se de uma quinta-feira que antecedia um feriado na sexta-feira, com emenda no final de semana e, por se tratar de uma cidade turística a cidade estava com um número de pessoas dobrado, comparado com o número de moradores locais.
“Que calor infernal! Daria tudo para curtir uma praia e surfar.” ─ pensou Lilian.
Ao olhar o relógio, Lilian constatou estar atrasada, o farol abriu e a jovem saiu em fortes pedaladas. Chegando do outro lado da avenida, deparou-se com pessoas transitando na extensa calçada a caminho da praia e, para não causar acidentes, apertou fortemente o freio da “magrela” que, não obedecendo ao seu comando, atropelou levemente um rapaz que andava pelo calçadão. O jovem acidentado caiu no chão e ficou por alguns minutos com a mão no joelho, gritando de dor.
─ Você está louca? ─ falou gritando o acidentado.
─ Machucou moço? ─ perguntou Lilian.
Todos que ali passavam, paravam para bisbilhotar o que estava acontecendo, Lilian estava a uma quadra do seu trabalho e já inquieta por conta do seu atraso, perguntou para o rapaz acidentado se ele queria que chamasse socorro. Foi quando Daniel levantou-se e bateu três vezes o pé direito no chão dobrando o joelho o rapaz que aparentava uns vinte anos, olhou para Lilian e disse para a jovem tomar cuidado por onde pedala, falou que o acidente poderia ter sido pior… Lilian respirou fundo… e acalmou-se percebendo ser um pouco de fingimento por parte de Daniel.
─ Que bom que você está bem! ─ aliviada falou Lilian para o Daniel. ─ Estava quase chamando o resgate ─ complementou Lilian.
─ Estou melhor! ─ falou Daniel impressionado com a beleza de Lilian, estudante de educação Física, surfista, ciclista e atrasada para o trabalho.
Os banhistas curiosos vendo que tudo estava bem com os dois jovens, agora amigos, seguiram em direção ao banho de sol. Daniel não perdeu tempo e convidou a atrasada a um encontro no mesmo dia a noite no bar na avenida da praia. Lilian percebeu no belo rapaz um olhar bondoso e, aceitou o encontro com a intenção de desculpar-se com o rapaz pelo acidente.
Lilian despediu de Daniel contando para o rapaz que já estava atrasada a, quase uma hora e partiu para o escritório. Chegando ao estabelecimento contábil, foi recepcionada pelo contador dono do recinto, com uma carta de demissão para assinar.
Voltou desanimada pelo mesmo caminho, agora com tempo e desempregada, tudo que queria naquele momento era chegar em casa, contar para a D. Beatriz o acontecido. Ao chegar, conversou com a mãe que, a tranquilizou, se trancou no quarto e, chorou, culpando Daniel por demorar tanto para levantar-se do chão, imaginando… que se tratava de um manhoso. A única coisa que passava pela cabeça da jovem era o fato de como pagará a faculdade e quanto tempo levaria para encontrar outro trabalho.
“Agora é que vou mesmo neste encontro e falarei com aquele boy, que por culpa dele fui demitida” ─ pensou Lilian, com raiva de Daniel, culpando-o de sua demissão.
O sol se pôs, Lilian levantou da cama, tomou um banho se arrumou e foi para o bar, “recanto dos surfistas.” Chegando no local combinado o “playboy” Daniel, não havia chegado. A cobiçada pelos jovens da praia, sentou-se na cadeira em uma mesa reservada pelo Daniel e, pediu um gim-tônica.
Quando a Lilian estava quase para terminar a bebida, Daniel chegou desculpando-se, explicou que, o motivo do atraso foi por conta que estava analisando os relatórios da Instituição de ensino que o seu genitor era dono mantenedor.
─ Se eu fosse igual ao meu ex-chefe, ia te mandar embora pelo atraso ─ indagou Lilian, mostrando um olhar de raiva em direção ao olhar do “playboy”.
─ Você não é o seu chefe! ─ Daniel debateu com a Lilian. ─ Tenho certeza que é mais linda que o barbado do seu patrão ─ Daniel falou brincando e distraindo a linda e formosa Lilian. ─ Que história é esta de ex-chefe?
─ Perdi o meu emprego, não tenho mais patrão! ─ falou Lilian, para o jovem Daniel, e culpou-o.
Daniel tomava cerveja e Lilian no seu segundo gim-tônica, seguiam… na noite conversando, e dando boas risadas. Daniel explicou-se falando para a futura namorada e professora de educação física, que não teve intenção de arrumar problemas e confessou que quando a viu, o coração bateu forte e se jogou na frente da bicicleta e, elaborou uma cena, para se aproximar da garota caiçara.
─ E hoje estamos aqui! ─ falou Daniel, nem um pouco arrependido pelo que fez.
─ E eu, sem o meu emprego e, correndo um risco de trancar a matrícula da faculdade ─ falou Lilian, mais tranquila por desabafar com Daniel.
Se despediram trocaram números de telefones e, partiram cada um para suas residências, quando Lilian chegou em sua casa, foi para o quarto, e logo recebeu uma ligação.
Para a surpresa de Lilian era o Daniel informando-a que conversou com o seu pai, contando o acontecido e, ele sensibilizou-se e aceitou o pedido de Daniel, em dar uma oportunidade de emprego e uma bolsa de estudo integral para linda jovem.
Lilian desligou a ligação agradecendo o “playboy” e, correu para contar a novidade para D. Beatriz que, falou para filha, que nem tudo que aparenta ser ruim, tem um final triste.
FIM
O QUE É O AMOR AGORA?
por Paulo Brito
IG: @paulodebrito_
— Eu sei que entre nós já existiu todo amor do mundo.
Agora sinto que existe essa distância intransponível, uma angústia constante de sentir sua falta quando estou ao seu lado.
Às vezes gosto de imaginar que tudo entre nós está terminado, que anos se passaram para enfim nos encontrarmos novamente, eu como uma nova pessoa e você como outra que não essa que vem sendo.
Trombamos em uma rua qualquer ou na casa de um conhecido em comum, e não é como se os últimos anos não tivessem passado, mas como se fosse um encontro de almas novamente, da mesma forma que foi quando te encontrei na primeira vez.
O desejo real é de te conhecer de novo para que toda mágoa e rancor que temos acumulado, toda palavra atravessada que usamos como armamento para ferir, não tenha existido.
É um desejo tão infantil, como o de um bebê que para evitar a culpa de machucar a mãe boa cria uma outra mãe má.
Eu te criei na minha mente? Eu te transformei no vilão dessa história, amor?
Se sim, então onde estava seu comportamento bendito e benigno quando passei semanas tentando me comunicar?
Se a culpa é minha para carregar, onde estava você quando eu implorava perdão por pecados que existiam apenas aos seus olhos?
Esse pedestal moral que ocupa te impediu de enxergar, de me enxergar querido?
Onde foi parar o amor, onde fomos parar? Não estou terminando esse relacionamento, ele já está terminado, falta-nos apenas a despedida e jogar terra por cima.
Crescemos para além de quem éramos juntos, estamos tão diferentes que um futuro lado a lado parece-nos mais punição que a benção divina dos tempos passados.
Eu não sou mais passível de ser amada por você e percebi ao longo do caminho que nem quero, não quando me amar parece lhe exigir esforços absurdos e insatisfatórios.
O que é o amor sem o mínimo de satisfação além de punição...
NOSSOS COLUNISTAS
Luiz Primati, Alessandra Valle, Sidnei Capella e Paulo Brito.
Alessandra, a justiça de Deus tarda, mas não falha! Luiz, coitada da Dra. Karen, lidar com tantas personalidades em uma só pessoa. Será? Curioso para ler o próximo capítulo. Paulo, não devemos insistir no que está errado e confuso!
Parabéns meus Caros amigos!
Luiz, Meu amigo! Nada dura para sempre!
Alessandra Valle – Muitos oportunistas, predadores usam como artimanha para com as suas vitimas, os sonhos das mesmas, é triste ver estas casos, mas é sempre importante relatá-los para jamais caírem em esquecimento.
Luiz Primati – Vejo aqui tantas semelhanças com dois filmes que adoro, ambos sobre este tema, apesar que um mostra esta realidade de uma forma, e o outro de outra forma bem diferente. Falo do “fragmentado (2016)” e do “ Identidade (2003)” Ansioso para ver o que vais fazer no desenrolar do conto ;)
Sidnei Capella – o playboy no fundo era um manhoso… apesar de boa pessoa, tinha a sua manha :D mas salvou-se :P
Paulo Brito – Texto reflexivo e bastante bom, um tópico que…
Eu fiquei lendo o conto da Alessandra e torcendo para que o pilantra fosse preso, mas, infelizmente, ele escapou... da lei dos homens! Da divina, jamais!
Sidnei, por fim, mostra que não devemos perder a esperança na primeira negativa.
E Paulo Brito traz uma crônica, um lamento de um amor que não mais se sustenta.