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Foto do escritorLuiz Primati

CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 1 — 16/03/2022

Mais um caderno da Valleti Books e esse inteiramente comandado por Carlos Palmito. Portugal tem revelado escritores fantásticos como Joana Pereira e Joana Rita e cada um deles merece ser ouvido. A Valleti Books e Carlos Palmito firmaram um compromisso de entreter os seus seguidores com contos que seguirão uma temática: o que ocorre nas noites, quando todos adormecem? Isso é o que Carlos Palmito vem nos contar. Curtam esse novo caderno, pois tem tudo para encantar os nossos leitores.


Leia, Reflita, Comente!


Foto de Maurício Mascaro no Pexels


EXCESSOS


por Carlos Palmito


Sal a mais, salgadíssimo, tanto que tornava o cachorro-quente impossível de tragar, ardia ao passar na goela.


Atirou-o em direção ao caixote do lixo, falhou por milímetros, mas não se importou. Que diferença faria mais um pedaço de merda na imundice global da cidade?


Pegou na cerveja, gelada, ao menos esta estava decente; bebeu tudo de um único trago, amarrotou o copo que atirou para a lixeira onde a comida apodrecia, soltando um sonoro arroto no mesmo instante.


— O melhor cachorro-quente de Nova York, dizes tu? Que valente tanga, se isto é o melhor nem quero imaginar o pior.


Atirou uma nota para cima do tampo da roulotte, enrolou um cigarro e partiu na noite, abandonando nesse ato o nauseabundo cheiro a gordura queimada, sem sequer esperar pelo troco.


Adentrou por entre as vielas lamacentas, traseiras de restaurantes, de cafés, que tresandavam a mijo, um verdadeiro esgoto humano. Adorava passar naqueles locais, na sujidade do mundo, aqui, ao inspirar a náusea humana, entendia que cada moeda tem duas caras; percebia que o claro tem escuro, que os jardins usam excremento como fertilizante… que a beleza nasce da podridão.


Virou na terceira ruela, sabia na perfeição para onde queria ir, um caminho que foi percorrido tantas outras vezes, sendo que hoje era simplesmente mais uma.


Vinte passos à sua frente estavam uns putos sentados no beiral de uma casa, adolescentes com a cara desfigurada por acne, nas suas fartas gadelhas, a fumar. Sentiu o aroma da erva que morria em chama lenta na mortalha deles, sorriu, estugou o passo.


— Puto, passa-me a ganza.


— Mas… — ainda começou um deles, sendo de imediato interrompido.


— Passa-me isso senão dou-te um estalo que ficas estendido no chão a chorar pela mamã.


Os cabeludos cara-de-acne não tiveram coragem para rabujar mais, passaram-lhe o charro. Deu apenas dois bafos, daqueles prolongados, sentiu os pulmões inundarem com o doce fumo da erva, a cabeça flutuar, elevar-se sobre a mórbida cidade de esqueletos ambulantes, devolvendo-o logo a seguir.


— Não está pior, mas já fumei bem melhor — expirou então a embriaguez em formato de fumo, lembrando-se de uma frase “a cobra está fumando”.


No final do beco virou à esquerda, seguindo para norte pela avenida principal, enquanto contemplava os carros que circulavam sobre o alcatrão negro em direção a local nenhum. Almas repetitivas de uma metrópole esquecida, fantasmas a deambular em alegóricos veículos ambulantes, talvez mesmo fios perdidos num tear que já não consegue tecer.


Estava perto do destino, os néones rosa-choque cintilavam interminavelmente na porta número cinco, a um ritmo tão perfeito que pareciam um pacemaker, e até mesmo neste local, junto ao trânsito, já conseguia ouvir a música, sentir-lhe a vibração nos ossos.


Caminhou lentamente na direção do flamingo flamejante, aquela estrela noturna em formato de néon, enrolando mais um cigarro, subiu os degraus dois a dois, passou pelo porteiro que lhe deu um cartão, escancarou as portas da degradação noturna entrando em passo firme nesta possível recriação de uma “Caverna de Platão”.


Todo o ambiente fedia a suor, álcool, tabaco; a maior montra viva da corrupção corporal, vícios escondidos entre quatro paredes, ao som de colunas que vomitavam decibéis como um agarrado gomita o conteúdo da seringa nas veias. Sentia-se em casa.


Passou pela pista de dança, impelindo todos quanto surgiam na sua frente, o objetivo era o balcão. O corpo tremia de ansiedade por um whiskey duplo. Subitamente estancou, algo lhe chamou a atenção, uma ruiva que dançava, rabo e seios firmes, olhos fechados a pular com uma cadência ritmada pelas sonâncias escolhidas na mesa do DJ.


Era perfeita, uma flor alimentada a estrume. Dirigiu-se para lá, agarrou a bruxa (todas as ruivas são bruxas, não são?) pela cintura e puxou-a para si. Esta abriu os olhos no exato momento em que os lábios se colaram, a língua invadiu-lhe a privacidade da boca, até à garganta, remexendo tudo lá dentro, lambuzando, salivando, asfixiando.


Sentiu umas mãos agarrarem-lhe os ombros…


— Que merda vem a ser esta? Ela está acompanhada, põe-te a milhas. — Provavelmente do dono desta voz de cana rachada, e puxar com firmeza, separando os lábios, as línguas, a saliva, piscou o olho para a ruiva, sorriu maliciosamente, contemplando o batom vermelho naqueles lábios carnudos, enquanto fechava o punho.


O senhor acompanhante de bruxas não previra o gesto, foi apanhado de surpresa pela mão cerrada, que o atingiu em cheio na face direita, atirando-o desamparado para a imundice do chão flutuante.


A dor surgiu só dez segundos após o impacto entre o martelo de guerra e um escudo de barro, tal não foi a ferocidade da investida.


— É toda tua! Só queria experimentar a mercadoria.


O foco da atenção voltou-se de novo para o bar, existia lá um whiskey que implorava ser bebido, apesar de ainda não o saber.


Sentou-se, colocou o cartão no balcão na frente do empregado, apontou para uma garrafa de rótulo vermelho.


— Duplo se faz favor.


— Gelo?


— Que gelo que nada. Puro!


O barman encheu o copo, líquido amarelado… ouro na autenticidade do sentido.


Foi engolido de um único trago, sentiu-lhe a brutalidade a queimar por onde passava no percurso até ao estômago, amava essa sensação, fogo a percorrer-lhe o corpo.


Voltou para a pista de dança iluminada a luz negra, apetecia-lhe dançar, rodar, pular até não conseguir mais, até à exaustão corporal, à transpiração colar-lhe a roupa no corpo, alagar… cair para o lado e dormir ali, entre lixo e insetos.


Saltou, berrou como se o mundo estivesse a rebentar; rodopiou, caiu de joelhos na pista que lhe pertencia, elevou a cabeça fixando o olhar da bola de cristal, rosnou, riu depravadamente. O mundo estava em pausa, as pessoas não existiam… só subsistia o ritmo, a música, as cores que se desbotavam nas paredes, o suor que escorria pelo corpo como uma cascata corpórea.


Ergue-se num último salto, cambaleou abalroando duas criaturas, derrubando-lhes os copos de cerveja das mãos.


— Toma atenção por onde passas — resmungou um deles.


Estava a cambalear, tentando-se obrigar a fazer uma linha reta até ao bar, mas a frase fez os seus músculos estagnarem. Voltou a cabeça na direção daqueles insultos de pessoas, a vontade era obrigá-los a lamber a cerveja do chão, mas em vez disso contentou-se em mostrar-lhes o dedo do meio, seguindo caminho quase de imediato.


— Joel, quero um shot de tequila.


O rapaz do lado de lá do balcão que poderia, ou não, chamar-se Joel atendeu o pedido, encheu um copo com tequila, colocou sal fino e uma rodela de limão no balcão, anotando tudo no cartão que lhe foi oferecido.


O sal foi posto nas costas da mão, entre o polegar e o indicador; lambido, o líquido translúcido deglutido, a rodela de limão chupada, enquanto os olhos estavam fixos numa loira de seios volumosos na outra ponta da pista, perto da porta de saída…. Envergava uma minissaia negra e um top branco, justíssimo, que os faziam sobressair ainda mais.


Desencostou-se do balcão a custo, sentia a cabeça flutuar, pairar para lá na bola de cristal, acima das nuvens, iniciou a caminhada na direção da voluptuosa presa, desobstruindo da sua frente tudo o que impedia a visibilidade, desviando abrutalhadamente pessoas, obstáculos.


Viu-a virar-se, dando-lhe as costas, balançar o rabo ao ritmo dos tambores da selva. Aproximou-se sorrateiramente, colou-se a ela, sentindo-lhe aquele monumental traseiro roçar-lhe a cintura, passou uma mão pela frente, agarrando-lhe um dos volumosos seios, pressionando-o, desviou-lhe o cabelo com um sopro, e passou-lhe a língua lentamente pelo pescoço, deixando um rastro de saliva.


— Na tua casa ou na… — não teve tempo de terminar a frase, sentiu o corpo ser elevado no ar, um dos seguranças já lhe tinha o olho em cima.


— Horas de pagar e pores-te na alheta.


— Estás-me a meter na rua?


— Estou! — afirmou o grandalhão, uma mistura de Sansão com Hércules, com a voz brusca, dura.


Atirou-lhe o cartão à cara, como se estivesse a arremessar uma faca.


— Paga tu então, que de mim não vêm um chavo, idiota.


E saiu, porta fora, tropeçou nos degraus, estatelou-se ao comprido no chão. Levantou-se cambaleante, ouviu buzinas, ouviu alguém gritar para si de dentro do bar, que se lixassem todos. Virou costas e iniciou o percurso de volta, desta vez sempre perto da avenida percorrida por carruagens sem cavalos.


Contemplava as luzes que ficavam por segundos no ar, aquando da passagem dos carros, uma predominância de vermelhos e amarelos, sentia a brisa da noite, a embriaguez, a dormência do corpo, necessitava de um teleporte, como nos filmes de ficção cientifica.


Demorou quase uma hora a chegar a casa; conseguiu enfiar a chave na fechadura após sete tentativas, quando estava prestes a desistir.


Entrou a apalpar as paredes, segurar-se nelas, sentia o estômago a querer livrar-se do conteúdo, uma náusea profunda, vomitou ali mesmo, no vaso de flores, limpou a boca com as costas da mão e seguiu em direção ao quarto, era imprescindível dormir.


Atirou-se ainda com a roupa no corpo para cima da cama, ficou de barriga para cima a observar o teto que girava na frente dos seus olhos a uma velocidade assustadora.


Ouviu passos; pressentiu alguém parar junto à porta, não teve força para levantar a cabeça.

— Mas que porra! — esta voz masculina ressoou na divisão, notava-se nela uma incredibilidade pura, nenhuma acusação, simplesmente estupefação.


— Não me fodas a cabeça, que estou sem paciência. — respondeu para o homem. — Se queres foder alguma coisa, fode isto. — Arregaça então o seu vestido vermelho, e abre as pernas, expondo assim a nudeza da sua vagina impecavelmente depilada.




AUTOR

Carlos Palmito

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9 Comments


joanapereira.ft
joanapereira.ft
Mar 22, 2022

O Carlos é ótimo na descrição, dá-nos os pormenores todos, conseguimos visualizar tudo na perfeição! Parabéns, meu amigão!

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Henrique Soares
Henrique Soares
Mar 22, 2022

Carlinhos, meu amigo! Conto riquíssimo em detalhes, passou em minha cabeça como um filme de tão detalhista que és! Parabéns! 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽

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sidneicapella
sidneicapella
Mar 18, 2022

O cara ficou chapado na noite, kkkkk

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Carlos Palmito
Carlos Palmito
Mar 18, 2022
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não era um cara, era uma :) foi sempre ela a noite inteira, nunca ele ;) se notares, em ponto algum no texto eu digo se é um ele, ou uma ela :P, excepto no fim, quando ela se deita na cama e arregaça o vestido ;)

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Stella Gaspar
Stella Gaspar
Mar 16, 2022

Estimado escritor Carlos Palmito, inicialmente parabéns por esse espaço de sua responsabilidade e autoria. Desejo sucessos e elevadas imaginações. Li o texto de sua autoria e me inquietei um pouco com a desnuda realidade que escreves. Um choque não por outra coisa a não ser, por ver o retrato da noite e seus personagens tão desnudos e em valas de perdições. Triste realidade, sim é a vida nua e crua. Lua, estrelas , escuridão, vícios, sexo, assim é o retrato de uma noite na promiscuidade de muitos e muitas.

Deixo aqui somente, uma curta visão de meus olhos sensíveis ao ser humano em qualquer narrativa! 🤗

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Luiz Primati
Luiz Primati
Mar 18, 2022
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Stella sempre com o olhar analítico! Ótimas observações!

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dittrich.eclair
dittrich.eclair
Mar 16, 2022

Um "guarda roupa" foi preciso para colocar à correr uma "dona" de vestido vermelho?!?!🤔🤭🤭🤭 Muito bem senhor contista....e que venham muitos mais!!!!

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