AUTOR CARLOS PALMITO
Nasceu na cidade de Évora, Portugal. Aprendeu a ler e escrever antes de iniciar a escola, por força e dedicação da sua mãe. Trabalha na área de TI, apesar da sua verdadeira paixão se encontrar na escrita, sendo nela que despende grande parte da sua energia. O primeiro livro que leu, e um dos que mais o marcou foi “O Conde de Monte Cristo”, teria sete a oito anos na altura, mas desenganem-se se pensam que ele se fixou só por romances, pois ele lia de tudo, desde banda desenhada a livros de geografia. Durante o seu percurso na escola, foi convidado a ingressar no jornal escolar, odiou esta parte, aqui descobriu que adora escrever ficção, mas odeia escrever sobre realidades. Tem como autores favoritos Alexandre Dumas, Júlio Verne, e o que considera seu ídolo e inspiração, Stephen King. Considera-se um apaixonado por letras, filosofia, psicologia e arte em geral, este autor desde cedo que começou a rabiscar contos e poesia. A sua criação hoje em dia rasa a loucura e a lucidez, a harmonia e o caos. Autor no blog https://allinone.blogs.sapo.pt
O PESADELO DO DESERTO SOMBRIO
O vento uivava no deserto, soprando a poeira de uma terra devastada, enquanto John, um pistoleiro solitário, cavalgava em direção à cidade-fantasma de Dusthaven.
Daqui até às linhas de água, ainda iam muitos dias, e a água que carregava desaparecia na velocidade alucinante de um comboio fantasma, parecendo evaporar-se sob o sol escaldante das areias intermináveis.
A última povoação pela qual passou estava deserta, excetuando alguns ossos de tempos antigos. O poço secara, e os únicos animais nas proximidades eram intragáveis. Lesmas de metro e meio, deixando um visco corrosivo, corvos com asas envenenadas, e as matilhas de lobos com pelo eriçado, espinhoso, que projetavam sobre as suas presas, paralisando-as. Dizem que a paralisia do veneno deles, durava quase dois dias, e as dores após eram lancinantes.
Parou perto de uma casa abandonada. Possivelmente um antigo posto de trocas comerciais.
Dizem as lendas, que após a guerra nuclear, quando a sociedade tentou erguer-se, foram criados vários destes postos. Era o local onde os mercadores vendiam as reservas que possuíam.
Essas mesmas lendas referem também que a tentativa de a civilização voltar, durou menos que uma década. Muitos grupos bárbaros começaram a levantar-se na poeira radioativa, e tudo o que traziam com eles era morte.
Analisou meticulosamente cada detalhe dos escombros. Viu paredes em colapso, um telhado parcialmente derrocado, feno apodrecido, o esqueleto de alguém algemado à cama, uma faca enferrujada, e diversas manchas acastanhadas, lembrando sangue seco. Teria que servir. A noite estava prestes a cair, e ele não se queria aventurar em Dusthaven na escuridão.
Conduziu a sua montaria para dentro das paredes que, apesar de se encontrarem em ruínas, ainda os poderiam proteger das criaturas que caçam ao luar, e esta, ia ser uma noite de lua vermelha.
Dos alforges tirou o resto da ração do seu fiel alazão, fez-lhe uma festa ternurenta no focinho, como quem diz: “Eu sei, amigo, eu sei. Eu também tenho fome. Amanhã de manhã, se a conversa do velho demente for certa, teremos as nossas provisões restauradas. Dusthaven, disse ele”.
John McCallahan volta a analisar o local, a façanha de ter conseguido atingir os quarenta e cinco anos, não foi por descuidos. A única vez que os teve, custaram-lhe a alma. Não queria voltar a perder fosse o que fosse.
A estrutura, apesar de mostrar bastantes pontos de rutura, e algumas partes em escombros, conseguiria servir de fortificação.
Nesta parte da casa onde se encontravam, o telhado ainda era semi-existente, poderia fazer uma fogueira para afugentar o frio gelado que apenas os espectros do deserto conheciam, sem que a luz dela desse nas vistas. Não queria, de todo, chamar a atenção de um grupo de bárbaros que pudesse estar nas imediações.
Arriscou, juntou algumas tábuas secas num canto, com trapos apodrecidos que encontrou e restos de tudo o que pudesse arder, retirou as pedras do bolso das calças, que friccionou uma com a outra, até estas faiscarem e atearem um dos trapos. Daí, foi fácil manter o fogo aceso.
Tira a sela do animal, e coloca-a junto a uma das paredes, divide a água com o cavalo, no momento exato em que o sol é engolido pelas areias infinitas do deserto, concedendo ao planeta uma tonalidade de fogo.
Retira do bolso esquerdo da camisa uma pequena bolsa, abre os cordões, contudo, dela, apenas vem o aroma do tabaco inexistente. Como lhe apetecia fumar um. O último que fumou foi com o velho, nas ruínas de uma taberna. O velho que lhe falou de Dusthaven. Pagou-lhe a informação com o que, nessa altura, ainda possuía de tabaco. Arrepender-se-ia? Não.
Nada resta nas noites solitárias, senão dormir. E, com isso em mente, o antigo xerife de Coallake, deita-se. Repousa a cabeça na sela, ouvindo o ronco do seu estômago. Do lado esquerdo, encostada à parede empoeirada, coloca a sua espingarda de canos serrados, porém, não sem antes verificar se os dois cartuchos estão na câmara. Do lado direito, à altura da sua cintura, deita a Colt 45, com o cão engatilhado. Afaga-lhe a coronha de madeira, com um afeto que já não possuiu por pessoas. Os humanos são traiçoeiros.
Do lado de fora, o vento uiva lamentos que nenhum ser consegue entender. O quente transmuta-se para frio, criando uma densa névoa nos areais infindáveis.
Cinquenta quilômetros para norte, uma mulher munida com um arco, observa atentamente a entrada de Dusthaven. Edifícios de madeira, baixos, vielas e becos, areia a invadir o perímetro, e aqueles esqueletos enforcados na entrada. Não gosta do que vê, e muito menos do que ouve. Atrás dela, em silêncio, uma hiena, cuja cauda termina numa lâmina orgânica, saliva em antecipação.
Nas árvores junto ao lago, estavam penduradas cento e cinquenta pessoas, com os pés a dançarem no vazio, embalados pelo vendaval de um inverno avassalador. Na entrada do vilarejo, uma placa dizia: “Bem-vindos a Coallake, população 150”. Um traço a sangue riscava os números um e cinco, como quem diz: população 0”.
— Tu foste o culpado! — pronunciou uma voz feminina no pesadelo.
John, acordou com essas frases, como se fossem lâminas em brasa a penetrarem-lhe lentamente entre as costelas, escavando um caminho doloroso em direção aos pulmões. Abriu os olhos. O cavalo continuava ali, a fogueira era agora apenas brasas. Ao longe, ouviam-se os gritos agonizantes dos corvos a caçarem uma manada de búfalos, que haveram inadvertidamente entrado no deserto.
— Merda! — sussurrou à aurora, sem se aperceber dos olhos que o observavam analiticamente.
Ergue-se num pulo. A curiosa ratazana, que o observava, foge. Entra num buraco existente nos escombros, com o rabo entre as pernas, em direção a um porão oculto. Nele existia mofo e latas de comida intocadas, cuja validade expirara ainda antes do apocalipse.
— Que porra! — sente a derme gelada, cada poro dela a verter gotículas de suor, e os pelos eriçados. Estava habituado a pesadelos, mas a voz da sua mulher, essa era uma novidade.
Apanha as armas do chão, a Colt vai para o coldre, amarrado à sua perna direita. A espingarda, prende-a num invólucro de cabedal amarelecido, nas costas, com a coronha para cima. Assim é mais fácil empunhá-la com rapidez, caso necessite.
Coloca a sela no cavalo, dirige-o para a rua, onde o impiedoso sol lança os seus primeiros raios abrasadores.
Mais um dia na pradaria.
Divide as últimas gotas de água com o alazão, monta-a e aponta-o para norte, à esquerda do nascer do sol. Necessitavam urgentemente de provisões. Sentia a fome devorar-lhe o estômago, canibalizá-lo.
Nesse mesmo instante, Maggie, seguida pela hiena, entram em Dusthaven. Esperaram pela manhã. O ar transportava um aroma adocicado a putrefação, com laivos de gordura a derreter ao sol e, estranhamente, de óleo de palma.
No ponto mais alto dessa cidade esquecida, um ser encapuçado, com o rosto desfigurado por mais batalhas do que as pessoas que vivem nos cemitérios, observa a cena, enquanto lambe o sangue que tinge a sua foice de escarlate. A seu lado está o cadáver de um dos lobos espinhosos, a ser devorado pela montaria do Coletor de Almas. O ser solta uma gargalhada sanguinária.
Maggie O'Donnell ouve a risada, como se tivesse tido origem e fim no seu tímpano. Sentiu o frio trespassar-lhe o lenço negro que lhe cobria o rosto, e leva instintivamente a mão ao arco. A hiena estaca, e rosna para o vazio, com o focinho apontado para oeste. Em sete anos de companhia, Maggie “silenciosa”, jamais vira medo na sua companheira, contudo, ali estava ele, estampado nos olhos do animal.
— Anda — ordenou.
Caminharam pela rua principal, a arqueira com os olhos a perscrutarem todas as janelas, em busca de perigo. Ela conhecera a cidade quase tão bem, como conhecia cada pedacinho da derme da hiena, contudo, em quinze anos, a cidade mudara muito.
“Dusthaven está morto, minha querida. O Coletor de Almas mudou-se para lá.”, dissera-lhe um velho a tresandar a mijo uns dias atrás, enquanto lançava uma baforada de tabaco no ar nauseabundo da taberna.
Nunca percebeu se aquela amostra de pessoa a queria assustar para ela se enfiar na cama com ele, ou, se falaria sério. Até hoje, acreditava na primeira versão, especialmente porque o animal a tentara violar.
Contudo, a dúvida, levara-a a entrar no deserto, e agora, ali estava ele, o seu antigo lar, destruído, engolido pelo deserto, tal como o velho foi engolido pela hiena. Não sem antes sentir a lâmina da cauda dela a trinchar-lhe o peito, como se fosse um peru.
Na quarta interseção da rua, Maggie vira à esquerda, caminha com determinação, sabendo aonde quer ir. A hiena mantém-se na sombra da arqueira, mais calma, porém, atenta ao que a rodeia.
Cinco casas acima, a viela começa a estreitar. Do lado direito surge uma nova interseção. O’Donnel ouve um rosnar gutural vindo das sombras.
A hiena salta imediatamente para a sua frente, recebendo uma saraivada dos espinhos projetados por um lobo. A sua pele dura como um couraçado, repeliu todos os projeteis.
Maggie saltou para a parede lateral, empunhando o arco, e retirando no mesmo instante uma flecha da aljava. Aproveitou o local onde o pé assentou para se impulsionar num novo salto, com a flecha já apontada ao alvo.
“O olho, Maggie, aponta para o olho.” Pensou ela, libertando a seta da corda que estava em tensão máxima. Esta zumbiu no ar, qual mosquito mutante, cravando-se certeiramente no globo ocular do centro da testa do lobo. De lá verteu uma massa disforme, cinzento-avermelhada, contudo, não foi suficiente para o matar.
A hiena atacou com a sua lâmina orgânica, dando tempo a Maggie O’Donnel para subir até ao telhado da casa. Aí, a arqueira posicionou outra flecha no arco, enquanto os dois animais rosnavam e mordiam. A cauda da hiena trespassou o abdómen do lobo, e a nova flecha de Maggie apontava para um dos dois olhos restantes, o esquerdo, verde como o musgo tóxico das cidades costeiras. Inspirou, manteve o foco e libertou esta nova flecha, que foi tão certeira quanto a primeira. O lobo tombou em espasmos, ainda a rosnar.
A hiena manteve-se em posição de defesa. Com os olhos fixos no beco, e o nariz a farejar o ar. Ouviu-se o som de patas a debandarem.
Aquando destes acontecimentos, John encontra-se já a escassos quinze quilômetros, cavalga furiosamente, perseguido por um grupo de bárbaros. Encontrara-os sem querer, a seguir a uma duna, camuflados com um manto da cor da areia.
Balas voam ao seu redor, sentiu uma a zunir perto do ouvido, que lhe furou a aba do chapéu, na sua frente vê a areia levantar, quando é atingida pelos projéteis perdidos.
Na mão direita tem a Colt, enquanto a esquerda segura as rédeas. Olha para trás, aponta cuidadosamente, as balas são um recurso quase tão escasso quanto a água, tem que ter a certeza que cada tiro será fatal.
Prime o gatilho, sente o meigo coice da arma, no momento em que ela grita raivosamente. O tiro é preciso, atingindo a montaria do líder dos perseguidores. Tombam ambos, fazendo com que vários dos que vinham atrás tropecem e caiam. Isso iria dar-lhe tempo. Com sorte, alguns dos cavalos terão fraturado as patas dianteiras.
Vira-se para a frente, ignorando os que saíram ilesos, dá uma batida leve, com as esporas, no flanco do seu alazão, impelindo-o a aumentar a velocidade, o qual ele obedece de imediato.
Na cidade, o Coletor de Almas, continua a observar o cenário, intrigado. Conseguiu ver Maggie e a sua hiena a matarem o lobo, através dos olhos do mesmo. Consegue também perceber John a aproximar-se velozmente, vê-o atrás dos olhos de um corvo que o acompanha silenciosamente. E sorri, o senhor da escuridão sorri perversamente.
— Olá, John — diz, com a sua voz gélida, ao vazio. — Sentiste saudades?
Apenas cinco quilômetros. O alazão espuma de cansaço, contudo, não abranda a passada. Restam apenas três, insistentes, que nem mulas contra a corrente, a dispararem tiros de carabina. Felizmente, a precisão deles é quase tão boa, quanto um cantil de água vazio.
Mesmo naquela distância, O’Donnel ouve o tiroteio. Sai à rua, vinda de uma das casas perto do beco onde enfrentara o lobo. Essa casa pertencera aos seus pais. A última vez que lá estivera, ainda era uma rapariga, sem seios avantajados, nem sonhos destruídos. Fora levada pelo avô, para ser ensinada na mestria da caça. Não funcionou. O velho morreu três anos depois. Tudo o que sabe, aprendeu sozinha.
— Corre Sifão, corre como o vento — ordenava John McCallahan. Uma bala passou ao seu lado esquerdo, mais veloz que o alazão.
Em minutos, passou a placa enterrada pelas areias do tempo, que diria algo como: “Dusthaven, população 3251”.
O que era estranho, para uma terra vazia. Onde estariam todas as almas que ali haveram habitado? Tirando os ossos pendurados no início da cidadela, nada se movia na cidade-fantasma. Bem, nada humano.
Maggie correu para a entrada, seguida pela sua companheira.
No cimo, o Coletor subiu para o dorso da sua montaria, uma mistura de um cão de dois metros, com mandíbulas de aço, e os pés laranja fogo, tendo uma pelagem esverdeada, com espinhos junto ao pescoço.
Sifão estacou mesmo na entrada, numa paragem brusca, que atirou o pistoleiro ao chão empoeirado. Atrás deles, os bárbaros suspenderam a perseguição. Nenhum dos três ousou atravessa a linha invisível que dividia a cidade do resto do deserto.
— Bem-vindos a Dusthaven — gritou o Coletor de Almas.
John sentiu os ossos gelarem. O seu cavalo relinchou em desespero, empinou as patas dianteiras, preparando-se para fugir. Conteve o impulso animalesco.
No beco próximo, Maggie teve a sensação de ser esfolada viva pelo timbre da voz, encostou-se a uma vedação em ruínas, com a hiena a observar tudo ao seu redor, apavorada.
— Quem? — John conhecia a voz, sabia que sim, apesar de não lhe conseguir associar um rosto.
Apanhou a pistola do chão, observou o seu cavalo, mas nada lhe exigiu. Sabia o quão cansado e assustado ele estava.
— Fica aqui, grandalhão — murmurou-lhe ao ouvido, dando-lhe no mesmo instante uma palmada amistosa no peito. — Já volto.
Seguiu a pé pela avenida. Um vento árido irrompeu pelas vielas, trazendo aromas de degradação.
O sino da igreja emitiu doze badaladas, seguido do rugido de uma besta que Maggie jamais ouvira.
John, viu-a, Maggie O’Donnel, ainda encostada à vedação, apontou o Colt para lá. A hiena colocou-se entre ambos de imediato. Um escudo para a companheira.
— Quem és? — gritou o pistoleiro.
A resposta foi nula, apenas se ouvia o vento a transportar mais areia para aquele local abandonado, onde antes viveram 3251 almas.
— Identifica-te, ou disparo — grunhiu McCallahan. Estava cansado, com fome, irritado.
— Calma — retorqui ela. A hiena rosnou, e, os sinos repicaram novamente as doze badaladas.
— Não tenho calma, ela terminou faz tempo.
— Então nada posso fazer — a hiena iniciou uma passada lenta, mas firme, em direção a John.
A arqueira aproveitou para entrar numa habitação, e retirar uma seta, que colocou firme no arco.
— Eu sou apenas uma pessoa, pistoleiro — continuou O’Donnel. — Não pretendo nenhum conflito contigo. Por favor, baixa a arma — nesse momento, a sua flecha de ponta metálica, estava apontada para o coração do homem, através dos restos de um vidro empoeirado e umas cortinas esfarrapadas.
John não era estúpido. Vira-a entrar na casa, mas sabia que mal apontasse a arma para lá, a hiena saltaria de imediato sobre ele, e a flecha que cintilava atrás das cortinas esvoaçantes, seria liberta da corda. Ele perderia essa batalha, de uma maneira ou de outra.
O Coletor observava a cena, deliciado, através dos olhos de uma mosca que se encontrava pousada na teia de uma aranha. Pobre aranha, não sabia o que a esperava.
— Baixas a pistola?
O homem continuava atento à hiena. Era um risco, sabia disso em cada impulso do seu sistema nervoso, mas não tinha outra hipótese.
Lembrou-se de um detalhe, o lenço negro a cobrir o rosto da mulher. E isso puxou uma memória, um campo esverdeado na entrada de uma floresta. Algo que ele presenciou. Uma menina acossada por canibais. Ela envergava um casaco com um capuz roxo a cobrir-lhe os cabelos e, o seu rosto estava escondido por um lenço negro. Quando o primeiro dos canibais se aproximou, uma hiena saiu do arvoredo, e, com uma única dentada, estraçalhou o braço do devorador de humanos. Seria a mesma pessoa? Recorda-se que nesse dia, tudo o que sobrou dos canibais foram vísceras, e membros esquartejados, espalhados por uns dois quilômetros. Qual era o nome?
— Maggie?
Ela piscou os olhos involuntariamente. Alguém que sabia o seu nome, como era possível?
— É o meu nome — respondeu. — Importaste de baixar a merda da pistola?
Ele resolveu arriscar. Guardou o Colt coldre, sempre atento à hiena.
O sino insistia nas doze badaladas, e o vento corria desenfreado, fazendo retinir antigos caçadores-de-sonhos.
Um silvo agonizante foi ouvido do outro lado da cidadela.
— Chamas o teu cão de volta?
Maggie obedeceu, chamou a sua companheira no mesmo momento em que saía da casa, já com a flecha de volta à aljava. Os olhos da mulher contemplavam curiosamente o estranho que sabia o seu nome.
— Como sabes o meu nome?
— A menina da hiena? — indagou John. — O teu nome é contado ao redor de fogueiras, Maggie. Eu vi-te faz já alguns anos, numa das florestas a sul daqui — apontou para a hiena. — Nesse dia, aqui o teu cãozito…
— Hiena — resmungou ela entre dentes.
— A tua hiena — corrigiu McCallahan —, desmembrou uma dezena de canibais.
A mulher franziu a tez, revelando um pouco da sua madeixa acastanhada.
— Isso foi depois do meu avô morrer — estava perplexa. — Estavas lá? Porque não me ajudaste?
— Com essa coisa ao teu lado, precisavas de ajuda?
— Tens razão, não precisava — pausou a fala por um instante. — Como te chamas? Que fazes em Dusthaven?
John encolheu os ombros, sentindo o reflexo de um espelho encandeá-lo momentaneamente.
— Provisões. Fiquei sem comida e água.
O sino voltou a repicar, agora foram vinte e quatro badaladas. Na base da abadia estava o cão infernal, que servia de montaria ao Coletor de Almas. Encontrava-se deitado, a aguardar o regresso do seu dono.
— Aqui não sei se tens sorte — Maggie arregalou os olhos, puxou do arco instintivamente. — Sai daí, rápido — ordenou, no exato momento em que a flecha era colocada na corda já em tensão.
O pistoleiro desviou-se para a direita, a flecha cortou o ar diante dos seus olhos, atravessando toda a viela, até ficar cravada na parede de madeira de uma casa no outro lado da avenida.
— Que foi isso? — indagou.
A hiena eriçou o pelo, levantou a cauda, ameaçadoramente, e começou a rosnar baixinho.
— Não viste? — perguntou O’Donnel.
Ver o quê?
— Hoje, estão na minha casa, meninos — a voz que emitiu a frase, congelava a própria alma. — Bem-vindos.
John viu um ser sair da sombra, o ser que provavelmente fez Maggie disparar a flecha, e a hiena entrar em posição de defesa.
O homem media cerca de dois metros, de ombros esguios. Na mão possuía uma foice, e os olhos estavam carregados de desejo por sangue.
— Que raios? — mal John completou a pergunta, já uma nova flecha atravessava o ar abrasador, contudo, o Coletor esquivou-se numa velocidade vertiginosa.
— Impossível! — exclamou a mulher, por detrás do lenço que lhe ocultava o rosto.
A hiena mantinha-se ameaçadora, porém, não avançava, estava apenas em defesa. Daria a vida pela sua companheira, mas jamais atacaria deliberadamente aquele ser.
John correu para eles, no momento exato que uma terceira flecha era colocada na corda.
— Esquece isso, Maggie — berrou o pistoleiro. — Fujam.
Os três correram, sob o olhar astuto do Coletor.
— Esta é a minha casa. Onde pensam que vão? — perguntou-lhes, enquanto flexionava os joelhos, para pular em direção ao telhado da casa mais próxima.
Maggie viu a cena, e empurrou John para a esquerda, contra uma vedação de madeira, que se desfez em pequenas tiras ante o impacto.
— Por aí, John, entra na casa e sai pela porta do lado esquerdo — grita Maggie, entrando na casa do lado oposto pela janela. A hiena, por sua vez, salta sobre o edifício, cravando as garras na parede até chegar ao topo. Daí, segue a sua dona do telhado, com a atenção totalmente focada no ser que os persegue, nos telhados do outro lado.
Sifão, encontra uma estrebaria atulhada de feno, entra para saciar a sua fome. Atrás do edifício, existe um buraco incomensurável, repleto de esqueletos humanos. 3244, para ser mais preciso. Juntando aos seis pendurados na entrada, e a Maggie, perfazem o total de 3251 almas.
Na casa, John vê o desenho de uma foice ensanguentada na parede da cozinha, com uma seta a indicar a porta esquerda.
O coletor salta do telhado onde se encontra, para o adjacente. Uma luz refletida por um espelho encandeia-o, fazendo-o falhar o pulo, e esbarrar-se na parede, com um grito de raiva.
Olha em volta, tentando descobrir a origem do reflexo, para apenas sentir o zumbido de uma flecha, tenta desviar-se, porém, a velocidade não foi suficiente. A flecha crava-se na sua perna esquerda, logo acima do joelho. Esganiça em dor. Os monstros sentem dor, não sentem? Contudo, mesmo com a dor, flexiona o joelho e salta de novo para o telhado, sendo novamente encandeado.
Maggie pula da janela do primeiro andar onde se encontra, para a rua, salta uma sebe de madeira, caindo do outro lado, no momento em que John sai da porta esquerda.
— Vamos John — ordena.
No topo dessa mesma habitação, está a hiena, de pelo eriçado, e com a lâmina orgânica da sua cauda a dançar furiosamente de um lado para o outro.
— Viste a luz? — perguntou John, enquanto a seguia.
— Vi — replica ela, sem abrandar o passo.
A hiena salta para o chão, para os acompanhar de perto.
Nos telhados, o Coletor de Almas continua a perseguição, mantendo também atenção à possibilidade de mais reflexos luminosos.
Após a primeira curva, John puxa Maggie, inesperadamente, para trás, travando no mesmo instante. A hiena rosna, saltando para a parede da casa do lado esquerdo, da qual pendia uma bandeira carcomida pelo tempo e pelos vermes da escuridão.
— Que foi? — interrogou a mulher bruscamente. — Temos que continuar.
— Olha — o pistoleiro apontou para o chão.
Maggie não viu nada, contudo, não chamavam John de “Olhos de Águia” em vão. Nada lhe escapava.
Ele pegou numa pedra, e atirou para a frente. O chão esmoronou, numa abertura de quatro metros de largura, por outros quatro de comprimento. Do buraco vinha um odor fétido, a visco de lesmas, mais corrosivo que as chuvas ácidas.
— Uma armadilha? — Maggie encontrava-se embasbacada. — Como a percebeste?
— A areia estava amontoada de forma diferente — John passou as mãos pelo cabelo. Nem se recorda onde perdeu o chapéu. — Não parecia natural, e depois — aponta para a casa onde a hiena está cravada —, essa bandeira.
— A bandeira? — a arqueira escancara os olhos. — Merda, tensa razão. EU vi pelo menos mais umas três.
— Onde?
O Coletor pula para o chão nesse instante. John pega na espingarda, aponta e prime o gatilho. Acerta apenas na parede da casa, pois a velocidade estonteante do ser, e os reflexos sobrenaturais, permitiram-lhe saltar para o lado, derrubando uma cerca e enrolando-se num emaranhado de arames farpados.
— Lá atrás — Maggie aponta para a direção onde o Coletor está.
— Raios — o pistoleiro analisa o perigo. Normalmente, uma criatura demoraria algum tempo a desenlear-se daquela armadilha, contudo, aquele ser não era uma criatura normal. — Acho que conseguimos. Anda, tive uma ideia. Leva-me aos locais.
Correram velozes, passando do lado mais afastado do Coletor, que grunhia no seu timbre de gelar ossos.
Maggie conduziu o pistoleiro e a hiena pelas ruas, entrando em dois becos, até pararem perto de uma casa com uma bandeira pendurada, a esvoaçar nos ventos ardentes do meio da tarde. Estranhamente, desde o início do confronto, que o sino da igreja estava em silêncio.
— Ela percebe ordens? — perguntou o pistoleiro, apontando para a hiena. Esta olhou para ele com desprezo.
— Sim — retorquiu Maggie.
John contou-lhe o plano de ação, e o que teriam que fazer. Ela acenou que sim, concordava.
Na abadia, o cão infernal acordou.
No emaranhado de arames farpados, o Coletor conseguiu finalmente libertar-se, ouvindo o disparo de uma espingarda. Correu nessa direção, estraçalhando todos os obstáculos que encontrou. Estava farto da brincadeira.
Quando entrou no beco da bandeira, viu John a entrar numa casa na rua ao fundo. Não fazia ideia onde Maggie e a hiena estavam, mas não fazia mal.
Desde que John o expulsou de Coallake, que desejava apanhá-lo. Conseguiu apanhar toda a população da terra, violara a sua mulher, e dera a filha à sua montaria, que a devorou lentamente, pedaço por pedaço. Os berros delas eram um doce na sua memória. Os berros de toda a população, antes de morrerem, eram o bálsamo mais inebriante que existia. Mas John não estava lá nesse dia. Sortudo do pistoleiro.
— John, John, não sentiste saudades? — indaga em escárnio.
Como resposta, vê o clarão da Colt, e a bala, da qual se esquiva habilmente. Avança um passo, dois passos, três. Vê a bandeira a esvoaçar à sua esquerda. Dá mais um passo, e, para por completo.
— Uma armadilha, John? A sério? — liberta uma gargalhada demente, capaz de arrastar bebés por nascer numa correnteza de pesadelos. — Achas que eu caía nisso?
Uma flecha sai do edifício adjacente, da qual ele se desvia num passo de dança.
Detrás de si, surge a hiena a correr. Colide contra ele, com toda a sua força, empurrando-o para a armadilha. O ser tenta fincar pé, mas a força do animal é avassaladora, como os ventos das tormentas.
Berra em pânico. Poderão acaso os demónios sentir pânico? Mas é tarde demais, sente-se a perder o equilíbrio, e cair no buraco do visco. Como último recurso, agarra a pata dianteira da hiena. Esta gane em desespero.
Maggie salta de imediato do primeiro andar, onde se encontrava oculta, para auxiliar a sua companheira.
John corre também para eles, em desespero.
— Não te aproximes Maggie — grita.
O cão infernal corre em direção a eles. Sabe que no momento que o seu dono morrer, ele também morrerá. A alma deles é uma única. Uma união concedida por um xamã tresloucado numa taberna a tresandar a morte e desejos macabramente mórbidos.
A hiena afasta Maggie com a cauda, e está prestes a suicidar-se, deixar-se levar com o Coletor de Almas para o abismo inundado pelo visco das lesmas.
John chega nesse preciso instante. Coloca dois cartuchos na espingarda, a qual direciona para o pulso do ser.
Dispara à queima-roupa. Primeiro um, depois o outro.
Tanto ele, como Maggie vêm a mão do Coletor separar-se do seu corpo, e este ser puxado pela gravidade em direção à sua morte.
Perto, o cão infernal desfaz-se num líquido gelatinoso, vermelho-alaranjado.
— Morreu? — pergunta Maggie.
— Esperemos que sim — responde o pistoleiro. — Não iria aguentar mais uma batalha destas.
— E agora? — replica ela.
— Sem provisões, nem sei — volta o homem, numa expressão de desolação.
— Acho que sei onde as encontrar — replica Maggie. — Meio dia apenas, para norte.
John olhou curioso, no exato momento em que o seu fiel alazão surge a trote.
— Se é só isso, vamos — montou o seu cavalo.
A hiena levantou a sua amiga do chão com as presas, atirando-a para as suas costas.
Mal deixaram a cidade, uma pequena faísca surgiu no edifício central, chamuscando o soalho com a forma de uma foice.
AUTOR LUIZ PRIMATI
Luiz Primati é escritor de vários gêneros literários, no entanto, seu primeiro livro foi infantil: "REVOLUÇÃO NA MATA", publicado pela Amazon/2018. Depois escreveu romances, crônicas e contos. Hoje é editor na Valleti Books e retorna para o tema da infância com histórias para crianças de 3 a 6 anos e assim as mães terão novas histórias para ler para seus filhos.
POMBOS
PARTE 1
O carro da polícia chegou com a sirena desligada. O sargento Freitas não gosta de fazer alarde, principalmente as duas da madrugada. Desligou os faróis do carro, deixando ligada apenas a luz da sirena, que rodava como um farol, para a ambulância localizar fácil ou endereço.
Muitos curiosos aglomeravam-se em frente da casa.
O sargento limpou o suor do rosto com um lenço que sempre carregava no bolso. Entrou na casa procurando pela vítima. Umas poucas pessoas se amontoavam no fundo do quintal para ver a vítima, como se fizessem fila para beijar as mãos do papa, cada uma saindo enjoada com o que via.
— Vamos dispersando pessoal. Cada um voltando para sua casa que está tudo bem. — Falava o sargento autoritariamente com os curiosos.
As pessoas não se dispersavam, porém, abriram-lhe a passagem. Era mais um chamado corriqueiro. Alguma briga de família onde um dos irmãos, bêbado, esfaqueou o outro. Recebia dezenas de chamados como esse, e a maioria era trote. Foi difícil de ser convencido, e somente atendeu porque a voz do outro lado da linha, expressava um pavor que ele nunca ouvira antes. Normalmente estaria tomando seu café tranquilamente no Departamento de Polícia.
— Vamos para casa dormir pessoal. Não foi nada.
— Não foi nada? — Falou um homem baixo cheirando a álcool, agarrando o braço do sargento. — O senhor nem viu o corpo e diz que não foi nada?
O homem parecia muito revoltado, que chegou a preocupar o sargento.
Um puxão mais forte e o homem soltou o braço do sargento. Mais alguns passos e Freitas avista o corpo. Uma cena dantesca e sanguinolenta. Não pode evitar a ânsia causada pela cena, levando a mão à boca.
Era uma velha de seus 70 anos, dona da casa, viúva, mãe de dois filhos. O sargento a conhecia bem. Aliás, não havia quem ele não conhecesse na cidade.
O corpo, esticado no chão de um quarto de três por três, apresentava-se dilacerado da cabeça aos pés. Não se achava os olhos. Haviam sido arrancados. Somente as cavidades onde um dia ali estiveram era visível. Alguns órgãos saíam pelos cortes existentes em toda a extensão do corpo. O fígado soltava uma substância esverdeada, tornando tudo repugnante demais para os olhos humanos. Os órgãos saltados, davam a impressão de que iriam sair rastejando pelo chão.
Durante 20 anos de profissão, o sargento nunca atendera a um caso com vítima de morte tão horrenda.
Saiu do quarto até que pudesse olhar novamente para o corpo. Limpou o suor do rosto mais uma vez. Esperou mais um tempo para ver se a ânsia não voltava.
Ruidosamente a ambulância chegou estacionando atrás do carro da polícia. O sargento tirou do bolso o bloco de anotações e uma caneta para fazer o B.O. antes que os enfermeiros retirassem o corpo.
Começou descrevendo o estado da vítima. Antes que o sargento pudesse terminar suas anotações, os enfermeiros já estavam na porta do quarto, munidos da marca.
Onde está o presunto? — Brincou o enfermeiro, velho conhecido da polícia.
— Ali dentro Mathias. — Apontou Freitas.
Cobriram o corpo com um lençol que sempre traziam. Colocaram no na maca com muito cuidado para que não esfacelasse, pois, algumas partes do corpo, estavam seguras apenas por uma fina fibra de tecido. Um dos enfermeiros sentiu algo mole sobre um dos pés, que o incomodava. Era um olho da vítima. Vidrado, expressando terror nas pequenas veias avermelhadas que circundavam a íris.
Removeram o corpo para a ambulância que partiu rápido e depois de alguns segundos, já sumiu entre as ruelas escuras da cidade rumando para o necrotério.
O sargento terminava suas anotações:
“… O que mais chamou atenção no corpo da vítima, foi a presença de muitas penas grudadas no corpo. Estava irreconhecível. Algo na sua expressão diz que ela teve uma morte sinistra.”
O sargento saiu em direção aos curiosos para ver se colhia alguma informação sobre como tudo ocorreu. Tinha certeza que seria uma dor de cabeça e tanto resolver este caso. Mais tarde desistiria das investigações. Tudo estava muito longe do seu alcance e compreensão.
Veremos como a história se desenrolou.
• • •
— Não aguento mais essa sujeira! — Berrou Marta histericamente na manhã daquela quarta-feira.
Vários meses que eu observava aquela sujeira feita pelos pombos. Penas e excrementos lotavam o quintal todo.
Só queria saber de onde vem tanta pena.
Sei que um dos grandes culpados por aquela sujeira, era o vento que soprava as penas pelo escritório todo, porém, eu também não entendia de onde vinha tanta pena. Era realmente incômodo, ao andar pelo quintal, pisar sobre as fezes dos pombos. Além da sensação desagradável, havia o perigo de um escorregão. Dona Marta, como todos a chamavam no escritório, já estava com quase 50 anos, um escorregão na sua idade, fatalmente a levaria para o chão, e quem sabe até a morte.
— Lucas! Juliana! Venha alguém aqui.
Esse berro foi o mais histérico de todos, tanto que causou um alvoroço entre advogados e funcionários que se encontravam no escritório naquele momento. Contive-me por um instante, pois conheço Marta. Vencido pela curiosidade, acabei indo verificar o que estava acontecendo.
— Cristina, Juliana, qualquer uma de vocês, deem um jeito nessa imundice. Toda manhã essas malditas penas. Em cima das mesas, pelo quintal… não quero mais encontrar essa sujeira no escritório pela manhã.
— Mas a gente limpa todo dia. — Resmungou Juliana.
— Só se fizermos plantão noturno para a limpeza.
Pude notar que Marta estava extremamente transtornada, tremendo, procurando pelos seus calmantes. Ficou dependente de comprimidos depois que perdeu o filho num acidente de carro. O seu marido parece ter dormido ao volante, descontrolando o veículo que se chocou com outro que vinha na pista contrária. Seu filho mais velho morreu instantaneamente. Wolney sofreu algumas fraturas na cabeça, no rosto e algumas escoriações pelo corpo. Nada mais grave. Marta ficou muito abalada na época. Agora está mais conformada com tudo.
— Meus comprimidos vermelhos. Onde estão meus comprimidos vermelhos? Você viu Cristina?
— Não, tia. Deve estar por aí, ninguém mexe nas coisas da senhora.
— Não é possível…
Remexeu um pouco mais na bolsa, os achando logo em seguida. Jogou 3 ou 4 comprimidos na boca e tomou um copo de água por cima para ajudar os comprimidos a descerem goela abaixo.
— Não aguento mais… — resmungou quase que num choro.
— Os clientes que não pagam, a empregada que me perder conta, esses pombos…
Os tempos estavam difíceis. Ou escritório estava recebendo uma tempestade de calotes de uns tempos para cá, que começou a afetar a todos que ali trabalhavam. O clima estava ficando muito pesado.
Por tudo isso compreendia seu nervosismo e sensibilidade. Não há quem suporte tanta coisa errada ao mesmo tempo.
— A senhora me chamou Dona Marta?
— Tudo bem, Lucas, já resolvi.
— Se é sobre os pombos…
— Já disse que está tudo bem.
Lucas parecia excitado com o que sabia sobre os pombos. Perante força maior, retirou-se levando consigo o segredo.
Pouco a pouco os advogados foram voltando ao seu trabalho. As meninas passaram a limpar a sujeira. Tudo voltou ao seu ritmo normal.
— Todo dia essa encheção de saco. Essa histérica berrando o dia todo. Juliana para cá, Juliana para lá. Juliana tira xerox. Juliana limpa essa sujeira. Merda de pombo, isso é que. Não nasci para limpar merda. Na minha casa eu não lavo nem o prato que como, aqui tenho que fazer tudo. Não nasci para isso, nasci para ser uma modelo famosa, como a Luiza Brunet, ou uma atriz de TV como Marília Pera. Se eu pudesse, matava todas as pombas do mundo. Uma a uma.
— O que você está resmungando Juliana?
— Não é da sua conta, Lucas. Aproveita e pega ali no canto da cozinha a pazinha de lixo.
— Faça o favor de quê? — Exclamou Lucas ironicamente esperando que Juliana pedisse pelo favor.
— Faça o favor, não! Pegue mesmo!
— Vá pegar lá você mesmo, e vê se aprende a ter um pouco mais de educação.
Virou-lhe as costas e saiu. Juliana continuou limpando e resmungando. Voltei para a minha sala para iniciar meus serviços.
— Felipe, ligar o rádio. Vamos curtir um sonzinho.
Apertou o power, girou dial até achar uma estação. Sentou-se atrás de sua mesa.
A vinheta da rádio estava no final e logo em seguida sucedeu à voz do locutor. — Aqui ZYK 849, frequência modulada estéreo, transmitindo em 112,4 MHZ, Montenegro, São Paulo. — A voz do locutor some, ficando só um fundo musical. — Bom dia, meus fãs ouvintes, aqui é o seu DJ preferido iniciando mais uma programação nesta quarta-feira de lindo sol. Até o meio-dia com vocês, eu, Dimas Jander, o seu DJ, com muita música, notícia e tudo mais que acontece no Brasil e no mundo. E para começar bem alegre a nossa manhã, relembrando o velho sucesso dos Beatles, “Good Day Sunshine”, vamos lá.
— Não acredito! Essa rádio tocando Beatles.
— Às vezes acontece.
Confesso que sou fã incondicional de rock and roll, Beatles está entre as minhas bandas preferidas.
O som na FM prosseguiu enquanto nos entretÍamos no serviço, hora ou outra repetindo o refrão “Good Day Sunshine”.
— O que aconteceu com o pessoal do escritório? — Felipe perguntou curioso.
— Ah, é besteira. Foi devido aos pombos que sujaram todo o quintal. A mesma história de sempre.
— E aí gente boa, foi o meu primeiro sucesso do dia, recordando os velhos Beatles. E agora…
— Sabe que ando meio cismado com esse escritório? — Falou Felipe em tom de confissão.
— Como assim! — Perguntei-lhe franzindo a sobrancelha.
— Lembrar da semana passada? Na quinta-feira, quando fiquei trabalhando até tarde?
— Sei! Conta logo Felipe.
— Todos já haviam se retirado. Só restava eu e o doutor Wolney no escritório. Quando foi por volta das 11 da noite, mais ou menos, o Dr. foi embora. Acompanhei-o até a porta, tranquei e voltei para minha sala para terminar o serviço. Você sabe que esse escritório é antigo. Tem porão e sótão como nas casas americanas. O chão é feito de madeira e logo abaixo tem o porão. As tábuas rangem quando pisamos, fazendo um barulho macabro, como nos filmes de terror. Isto lembro bem. O vento passando rápido entre as folhas dos pinheiros existentes aqui perto, fabricavam um silvo longo e agudo. Assustador. Terrivelmente assustador. Como se alguma alma chorasse, como um suspiro muito longo. Passado algum tempo que o doutor Wolney saiu, uns 15 ou 20 minutos depois, escutei barulhos de madeira rangendo, igual quando andamos pelo escritório. Um frio me percorreu a espinha. Minhas orelhas ficaram vermelhas, circulando o sangue rapidamente pelo meu corpo todo, acelerando meu coração. Parecia que meu coração pedia passagem para sair pela boca e fugir. Por um momento fiquei estático. Sem mexer com um fio de cabelo. Pairou sobre mim aquela paralisação momentânea. Um som de passos progredia, enquanto o vento assoviava lá fora. Parecia que alguém caminhava em direção da minha sala. Um ladrão talvez? Alguma alma penada? Seria a alma de alguém que viveu aqui, morreu e agora vaga pelas madrugadas, rondando o escritório, atravessando paredes na calada da noite? Muito medo tive, até que saindo do estado de letargia, resolvi enfrentar o meu fantasma. No porta-lápis, sobre minha mesa, havia um estilete do qual me apoderei. Se fosse alguma coisa do outro mundo, de nada me adiantaria, mas se fosse algum ladrão… fui atravessando o escritório com o estilete na mão. — Dr. Wolney? É o senhor? — Nada ouvia em resposta às minhas perguntas. Cuidadosamente eu ia transpassando as portas do corredor. Uma a uma, sempre com a sensação de que seria depois daquela porta que me depararia com alguma aparição. Nada depois da primeira. A tensão aumentava. Meu coração acelerava cada vez mais. A adrenalina era descarregada em excesso no meu sangue. Minhas pernas tremiam. Os ruídos continuavam. Meu corpo todo tremia. Onde se escondia? Atrás de que porta? Passei por mais uma porta e nada. Restava apenas uma antes da porta da rua. Se ao menos eu conseguisse chegar até lá — pensava. Seria invisível? Pouco a pouco fui atravessando o corredor que parecia ter quilômetros de distância até a rua. Passei pela última porta e nada. Consegui chegar até a entrada do escritório. Não pensei duas vezes para abrir a porta e sair correndo para longe dali.
— E o tal fantasma? — Indaguei.
— Não voltei para ver. Não tive coragem e nem contei a ninguém, a não ser agora para você. Sei que você pode ter achado o que contei, um tanto demencial… em pleno século XX, eu falar de fantasmas, aparições, pode parecer loucura, porém, acredite em mim.
Os fatos relatados por Felipe, contravêm a crença atual que conhecemos, no entanto, eu não poderia dar mais uma interpretação esotérica àquele relato. Fatos similares aconteceram no passado pelo mundo todo. Por que não aqui em Montenegro?
— Bom dia, Juliana. Limpou a merda hoje! — Caçoou Lucas logo cedo.
— Engraçadinho! E você, já descobriu como se livrar dos pombos?
— Já!
— Conta então Lucas.
— Segredo de Estado.
— Larga mão de ser chato.
— Promete não contar para ninguém?
— Palavra de Bandeirante!
— Você já foi Bandeirante?
— Não!
— Então por que fica prometendo?
— Vai Lucas, conta logo. — Exclamou Juliana já irritada.
— Está bem. Pomba adora milho, certo?
— Vou pegar um quilo de milho e misturarei veneno de rato. Coloco num prato o milho envenenado, e o prato sobre o muro do quintal. Depois de algum tempo que as pombas comerem o milho mortal, pá bum. Vão cair durinhas no chão.
— E você acha que as pombas não vão sentir o cheiro do veneno?
— Claro que não!
— E quem vai enterrar os pombos depois? Aparecerá um monte de pomba morta no quintal do escritório.
— Ora, a gente joga no lixo.
— É, para depois começar a feder. Não me venha com essa ideia maluca. Já chega o lixo da dona Helvina que fica ali na esquina. Os gatos vivem estourando os sacos plásticos e o cheiro de carniça vem direto aqui para o escritório. A dona Marta vai me encher mais ainda o saco. Esquece!
— E se eu trouxer uma espingarda de chumbo?
— Para que tudo isso? Deixe os pombos em paz.
— Eu não entendo você. Primeiro me pergunta como eliminar os pombos, depois quer que eu os deixe em paz. Você é mesmo uma chata de galochas.
— E você um crianção.
Lucas e Juliana estão em constantes choques de opiniões. Discutem por isso ou aquilo.
Uma coisa me despertou a curiosidade: o lixo de Dona Helvina que fedia carniça. O que teria no lixo? Dona Helvina morava ao lado do escritório. Fazia salgadinhos para vender. Parece que é viúva. Tem alguns filhos. Sobrevive vendendo seus salgadinhos. Coxinhas, empadinhas, bolinhos, pizzas e coisas do gênero.
Sempre aparece no fim da tarde, na hora que fome já está começando novamente. Aquele jeito arcado de andar, como se a cesta que carrega debaixo do braço fosse muito pesada. Cara franzida, escondendo o rosto atrás de um sorriso amarrado. Sobrancelhas espessas e escuras. Cabelo negro, bem negro, curto e ensebado. Pelo menos dá a impressão de que está sempre ensebado, duro no lugar. De loja em loja atrás de seus fregueses, ela anda com sua cestinha.
Chegando no escritório, sempre lança seu sorriso cordial.
— Olha o salgadinho gente. Está uma delícia hoje. — Coloca sua cesta sobre o balcão esperando o pessoal se aglomerar para comer seus salgados.
No começo ela aparecia toda tarde. Depois de algumas semanas começou a intercalar seus dias de visita. O pessoal ficou meio chateado com ela. Eu mesmo me aborreci logo no segundo mês que ela me cobrou 12 salgados a mais. Nunca mais comprei um salgado dela.
Algo estava errado. O lixo… o lixo? Teria alguma ligação com os pombos? Um estalo aconteceu na minha cabeça, e comecei a intrigar-me com eles, e foi nesses dias que passei a observá-los da janela da minha sala. Ficavam sobre o telhado da casa vizinha. Saiam em revoada pela praça toda tarde, sempre seguindo o líder, um pombo-branco, inteiramente branco, como nenhum outro do bando. Incontáveis sobre o telhado. Ficava imaginando-os pousados sobre o fio de alta-tensão da rua, como notas musicais postadas numa pauta. Todos devidamente encaixados em seus lugares, produzindo um som harmonioso.
— Posso também olhar o que você olha, Leo? Isto é, se você me contar primeiro.
— Olho os pombos. — Respondi a Felipe. — Como são organizados, silenciosos, digo, não são barulhentos como os pardais. Você já viu o estardalhaço que os pardais fazem toda tarde, na hora da janta deles? São milhares, todos piando ao mesmo tempo. Passe pela praça por volta das seis horas que você ouvirá a zorra que eles fazem.
Por um minuto ficamos em silêncio, só olhando.
— Qual seria a função dos pombos neste mundo. Ou melhor, qual sua utilidade? Tudo tem seu objetivo.
— Levar mensagens. Pombos-correio.
— Sabe que eu não havia lembrado.
— Um pombo bem treinado, pode voar quilômetros por dia levando uma mensagem. Levam-na num tubinho amarrado à perna.
Felipe é uma biblioteca ambulante de cultura inútil. O que preciso saber, perguntou a ele.
— Leo, posso ficar ao seu lado? — Veio Cecília com seu jeito manso, querendo agradar-me.
— Claro Ciça.
Ficamos os três olhando os pombos em revoada através da janela da minha sala. Incansavelmente voavam de um lado para outro, rasgando os céus com seus voos. Sem rotas traçadas. Cronometradamente faziam suas acrobacias sobre a praça, liderados pelo pombo-branco.
Por vários dias fiquei observando os pombos através da janela do escritório, sempre ladeado por Felipe e Cecília, que certamente não tinham muito interesse nos pombos. Comecei a notar que, a cada dia, o número de pombos diminuía. Estariam migrando para o Sul? Foi Felipe que notou o fato mais interessante.
— Leonardo, você viu o pombo-branco hoje? — Imediatamente uma sensação estranha me dominou.
— Não. Acho que não vi.
Cecília estava na janela também. O pombo-branco… O pombo-branco… Estas palavras não me saíam da cabeça.
O que estava acontecendo? Tudo começava a ficar misterioso, como se eu tivesse um quebra-cabeças para resolver, e só tivesse achado as peças dos cantos. O desenho parecia confuso. Precisava das peças do meio. Foi quando sem querer achei uma das peças do brinquedo.
— Queria saber quem é o dono dessa casa onde os pombos ficam o dia e a noite toda. — Pensei em voz alta.
— Vocês não sabem?
— Não Ciça! Eu não sei. — O Lucas me disse que é da dona Helvina.
— Dos salgados? — Espantado.
— Sim senhor.
— Mas a casa da dona Helvina não é aquela azul ali de cima?
— É! Só que esta casa é continuação daquela.
— Jura por Deus!
— Juro!
As coisas começaram a fazer sentido na minha cabeça.
— Felipe, acho que descobri algo importante. Vocês não vão acreditar…
— O que foi? — Perguntou Cecília assustada, meio preocupada com a informação que deu.
— Não vou dizer. Pelo menos até ter certeza do que suspeito.
Ficaram calados sem maiores perguntas. Afinal de contas, não havia motivo nenhum para que eles ficassem preocupados.
— Bem, meninos, eu já vou indo embora, pois já passa das seis.
Nem eu, nem Felipe falamos com ela, pois estávamos tão concentrados nos pombos, que ser uma bomba caísse atrás de nós, não desviaria nossa atenção.
— Ninguém vai me dizer “até logo”? — Falou Cecília, já irritada de ter sido ignorado.
— Desculpe Ciça, tchau!
— Tchau, gata.
— Assim está melhor. Bye.
Por mais alguns minutos, ou até mesmo uma meia hora, não sei, ficamos olhando os pombos voando de um lado para outro. Perdi a noção do tempo enquanto os observava.
— Quase sete horas. Vou embora senão a Beth me mata. — Falou Felipe quase que num tom de desespero.
— Está bem. Eu também vou subindo. — Por um momento meu ocorreu uma ideia.?
— Eu? — Perguntou como caçoasse do que eu lhe pedira.
— É! Quero confirmar algumas de minhas suspeitas e preciso de alguém comigo. Por favor, venha!
— Depende de que horas você vem.
— Depois das 10.
— A Beth vai reclamar um pouco, mas dou um jeito.
Continua...
Parabéns Contistas! 👻
A noite menos assustadora do ano, mas a mais requintada. aqui podemos comer cabidela, lamber os dedos e rematar com um copo de sangue extra virgem