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CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 22 — 05/10/2022

Mais um conto de Carlos Palmito. Mariana foi raptada pelo gigante e Ódin vai ao seu encontro. Ele está só e um submundo de trevas e criaturas horrendas poderão impedi-lo de alcançar o seu objetivo. A velha poderá ajudá-lo? Qual o fim de Mariana? Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.


Leia, Reflita, Comente!

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AUTOR CARLOS PALMITO


Nasceu na cidade de Évora, Portugal. Aprendeu a ler e escrever antes de iniciar a escola, por força e dedicação da sua mãe. Trabalha na área de TI, apesar da sua verdadeira paixão se encontrar na escrita, sendo nela que despende grande parte da sua energia. O primeiro livro que leu, e um dos que mais o marcou foi “O Conde de Monte Cristo”, teria sete a oito anos na altura, mas desenganem-se se pensam que ele se fixou só por romances, pois ele lia de tudo, desde banda desenhada a livros de geografia. Durante o seu percurso na escola, foi convidado a ingressar no jornal escolar, odiou esta parte, aqui descobriu que adora escrever ficção, mas odeia escrever sobre realidades. Tem como autores favoritos Alexandre Dumas, Júlio Verne, e o que considera seu ídolo e inspiração, Stephen King. Considera-se um apaixonado por letras, filosofia, psicologia e arte em geral, este autor desde cedo que começou a rabiscar contos e poesia. A sua criação hoje em dia rasa a loucura e a lucidez, a harmonia e o caos. Autor no blog https://allinone.blogs.sapo.pt

 

AOS OLHOS DE ÓDIN


Vento gélido, com odores de morte e lágrimas, misturados com desespero e uma pitada de podridão, assim era o que provinha da entrada dos animais para a mansão dos demónios, a masmorra infernal.


Antes de me embrenhar na sua imensidão desprovida de luz, a noite na noite, olhei para trás, lá encontravam-se a Loba e Mateus, discutiam formas de entrar, o que fazer uma vez lá dentro; despedi-me com um miado quase inaudível, transportado por Éolos até aos seus ouvidos.


Invadi então o covil do Juiz dos mortos, local de bruxos e defuntos que ainda respiram, de senhoras que dançam sob o formato de fogos intermináveis, e outras que dançam sem alento.

Nos becos uma girafa pintada com os verdes de um kiwi berrou cânticos de desolação, a deusa da lua chora pelas almas que se irão perder, a velha reza a divos e lendas, enquanto eu prossigo a minha demanda, passo após passo.


Existem batalhas gloriosas transmitidas por histórias e poesia, por bardos e pardos; sou apenas um gato branco com nome de um Deus esquecido, mas se a avó me colocou no caminho da filha de Gaia, poderei eu mesmo vir a ser cantado em trovas futuras; contudo, mesmo que não o seja, pela menina da rosa enfrentarei o próprio abismo.


Se as vielas exteriores marcadas por animais deturpados numa fantasia religiosamente insana são labirínticas, aqui, a andar dentro das paredes de um reino em putrefação, sinto-me enclausurado na repetição temporal de uma espiral infinda; os pelos eriçam-se, e da garganta sinto a libertação de um constante rosnar.


Sigo sem medos ou temores, o peito a roçar o chão, o olho verde mesclado com o azul, atento ao mais ínfimo pormenor. Felino em terras de canídeos, o que pode correr mal?


Oiço vozes roucas, bater de asas, de machados de guerra contra as paredes da inevitabilidade, sinto humidade a afogar-me os pelos manchados pela imundice da cidade da noite eterna, custa respirar. “Mariana, onde estás tu, filha da natureza, princesa de um reino em decadência?”.


Vou descendo cada vez mais fundo, sempre para baixo, em direção ao núcleo do tornado, os degraus falseados no interior das paredes, as quais se estreitam na minha claustrofobia, são espirais de ódio e demência.


Desço patamares, em direção ao brilho da aura rosa, as milhentas cores que a constituem, pois a cor dela é mutável, existem milhares, como grãos de areia num deserto neuronal da conceção de uma criança a definhar no seu leito; entre apitos constantes do seu ritmo cardíaco, com o peito alimentado pelo sopro divino de uma máquina incansável na tentativa vã de salvar um Deus.


Através das pedras que constituem as paredes irrefletidas da decadência universal sinto a malícia, acompanhada pelo rosnar baixo que se mantém aprisionado na minha garganta, consigo ouvir gemidos de prazer carnais adulterados pelo ato da repetição eterna, já sem voluptuosidade, deleite ou satisfação.


Continuo a minha queda, um Deus num salto de fé em direção ao único ser puro numa terra corrompida; a noite é eterna, e incessante é a cadência do mal, somos lobos civilizados, com fatos e gravatas a vender banha da cobra aos incautos, somos presas e predadores enclausurados nas carnes de um corpo cujo fim há muito foi desenhado nas areias do tempo.

Em breve seremos apenas memória e pó… e depois, apenas pó a pairar na tempestade do universo, podem os poetas dos tempos vindouros dizerem que somos poeira estelar a elevar fadas aos céus imemoráveis, todavia, somos, simplesmente, esquecimento.


Num nível abaixo do das meretrizes bramem vozes, vociferam gigantes, Baco reina para além das paredes.


As pedras transpiram lágrimas, na arena brigam homens; por uma garrafa de vinho morrem seres nos seus vícios, longe das ruas, nas quais eram unicamente invisíveis.


Consigo percecionar os tons cromáticos das auras que aqui se amontoam, negros, verdes pútridos, roxos gangrenados, amarelos em tons de pus, criaturas doentes da noite infinda, infames barões de coisa nenhuma, reinados perdidos a troco de dependências pecaminosos.


Os homens e as suas rosas, os espinhos cravados na alma e o perfume a encobrir a podridão, no fundo, tenho pena deles, desceram o rio Aqueronte numa barca a afundar-se, e com ela perderam-se eles.


Não posso desperdiçar tempo a pensar nestes humanos, apresso o passo, as passadas felinas, ergo o peito do chão e corro no minúsculo espaço onde estou aprisionado, Mariana necessita de mim, sinto-o, sinto-lhe a dor, a agonia e solidão.


Aos meus olhos passam imagens, runas do início dos tempos, onde antes existia sol na cidade conspurcada, as cores que nunca vi, o reflexo do astro-rei a brilhar num mundo inalcançável, em breve seremos apenas memória e pó, talvez uma runa na certidão de óbito de um Deus.


Rosno ante a inevitabilidade.


Salto agora nos buracos que dividem os níveis da masmorra, sempre em decrescendo, a nota de uma citara do mais grave para o mais agudo, apesar da gravidade estar no interior, e as próprias leis da gravidade me puxarem para o fundo… de Styx, quiçá.


Onde me encontro no momento consigo percecionar pouco, ao longe vejo o arco-íris da rosa dela, perto sinto aragem, vento a uivar nos corredores da perdição, árias de ruína e queda com odores de rosas no mais sombrio estado da alma, o olho verde lacrimeja, o azul mantém-se.


— Foco, Ódin — a voz era da velha, a avó que me colocou no percurso da filha da natureza. — Toma atenção ao que te rodeia, prossegue, não pares, jamais pares até estares junto dela.


Sigo, sou uma bola de neve a transmutar-se em avalanche, o Deus dos trovões, a poesia sem trova, faróis verdes e azuis na penumbra, no sonho, no coma; e tu, Mariana, és o meu alento, o vento que me agita os pelos, a liberdade e o amor, dádiva olvidada, pureza no meio da lixeira da discórdia. Por ti morrerei e em ti serei eterno.


Vejo mundos, universos, e no final apenas os versos não unificados, o tempo criou a terra, Cronos concedeu-lhe duração, e nessa concessão retirou-lhes vida, tudo está rabiscado nestas paredes, lápis de cera nas mãos de uma criança, onde começa a vida… onde termina a mesma?


É estranho o modo e as coisas com que nos preocupamos, a aceitação imposta, os impostores não aceitáveis, somos descendentes de barro, colocados todos no mesmo molde, moldamo-nos com o tempo, e no final todos temem o pai do Juízo eterno a conduzir ovelhas tresmalhadas num rebanho celestial.


Quanto mais desço, mais tresanda, pecados relegados para os recantos sombrios do espírito, o que os olhos não vêm, o coração não sente.


Oiço asas de borboletas negras, vejo baratas a correrem nestes corredores, eu próprio sinto-me perdido, não fosse o perfume e a cor da rosa de uma criança e já teria entrado em desespero.


Desço, mais e mais, como uma pedra a afundar no Oceano que nunca vislumbrei, como os marinheiros afogados por sereias, proteína para as suas filhas, dardos atirados à tempestade na ambição de a vencer, sou um gato sem botas que corre descalço em busca da salvação.


As paredes do castelo do rei louco transformam-se em areia movediça, todos os seres que a pisam afundam, tornam-se lama no lodaçal celestial; sinto algo quebrar-se na imensidão do meu espírito, a presença dos espetros é uma constante, o meu coração dispara, o ritmo torna-se frenético, como farol tenho apenas ela, Mariana.


Piso finalmente o último patamar, o derradeiro, estou ao mesmo nível que a aura especial da menina intocada, filha da natureza, princesa da lixeira deixada pelo homem, o olho verde tem esperança, o azul alento, os pelos continuam imundos pela mácula que a humanidade nos deixou.


Procuro a saída, a espiral de loucura teve direito ao seu término, decretado não por Cronos, mas pelo seu irmão, Tifão, Deus da Destruição, filho de Tártaro, sobrinho de Caos, o chão é pedra, as paredes mais afastadas e a claustrofobia ausente, sinto-me aliviado.


Caminho agora, o ar está eletrificado, pressinto ondas de calor a trespassarem-me o corpo, não aconchegantes como a fogueira no acampamento de Mateus, mas obscuras, carregadas de repulsa, de rancor, de irracionalidade, afinal, o fundo do abismo ainda está longe, quão profundo consegue ser o ódio?


Encosto-me à parede, mais pedra, as masmorras de um reino criado sobre dor e miséria, consigo-as ouvir gritar, gemer, salivar, urrar, tudo o que desejam é o final, apenas anseiam por isso, pelo desligar das máquinas e o adeus ao sofrimento, o seu testemunho será um grito mudo.


O branco eriça-se, os músculos retesam-se, o rosnar aumenta de tom, a poucos passos de mim, existe uma porta, nela está talhada uma rosa, negra como a noite, como a morte, na fresta que antecede o chão, subsistem labaredas a tremeluzir, as auras internas são laranjas e negras.


Escondo-me nas sombras, apuro a audição, borboletas negras dançam junto ao teto, ignoro-as, os morcegos canibalescos, ratazanas aladas, sanguessugas de contos de horror, baixo o corpo até conseguir um vislumbre para além da divisória da porta, lá existe um homem e a sua amada criada em fogo, concebida em raiva.


— Amanhã, Felício — a voz é feminina, das chamas do improvável, glacial a fazer lembrar os gelos dos polos. — A lua amanhã não existe, é aí o nosso momento.


O homem apelidado de Felício contempla a chama a dançar, uma serpente hipnotizada pela flauta.


— Tens a certeza, amor? — noto receio, incredibilidade e ânsia. — Não ouvi nada sobre eclipse.


— Absoluta, nem sempre são necessários eclipses para retirar à lua o brilho, para apagar momentaneamente a visão da Deusa que nela reside.


O homem regozija, mesmo sem lhe ver o rosto noto-o na expressão corporal, os braços deixam de estar em prece e aliviam a carga muscular.


— Finalmente poderemos estar juntos — demência na voz. — Seremos monarcas na cidade da noite eterna — um pacto por cumprir entre bruxos do submundo. — Diana, para ti, minha rainha mandei construir o mais sublime dos tronos.


Vejo o homem erguer-se, fundo-me nas sombras enquanto ele beija labaredas álgidas, sustenho a respiração com o olhar fixo na porta que sucede a da senhora das chamas, de lá surge candura, Mariana.


— Sacrificaremos a criança, uma alma por outra alma, assim exige a eternidade. — estaria a mulher dos fogos a falar da filha de Gaia?


O trinco abre-se, no topo os morcegos agitam-se, do interior da cela surge Felício na vastidão da sua loucura, ainda a contemplar a sua amada que se extingue a pouco e pouco.


— Até amanhã, amor! — fecha a porta, tranca-a e guarda a chave junto ao peito, naquele local onde em tempos existiu um coração.


— Até amanhã! — pulsa a debilidade das chamas que se esfumaça em podridão.


Aos meus olhos, Ódin, tudo é um registro, registam eles os movimentos do homem e as palavras que foram proferidas, a cidade está em queda livre, mesmo para a decadência os tempos estão contados, tudo o que virá, será dor e ruína.


Os passos afastam-se, as borboletas negras acalmam, e eu afasto-me da parede, caminho para a cela de Mariana, a criança do sacrifício planeado por dois seres criados no desejo de vingança, a ponte entre a vida e a morte de uma bruxa há muito imolada por orgulho.


— Ódin? — ela pressentiu-me. — Consegues entrar? — Contemplo a portentosa porta, carvalho maciço, desenhada para aguentar dinamite, desespero.


— Olha para cima — a velha a falar de novo — existe uma entrada no topo da porta feita com madeira da árvore da vida, um respiradouro.


Procuro pontos de apoio para chegar lá, reteso os músculos traseiros em busca do impulso necessário e salto, sou um gato voador, uma folha de papel a planar na incomensurabilidade apocalíptica de uma bíblia em desuso; aterro na ranhura, uma reentrância para deixar entrar oxigénio e o Deus do trovão, daí, entro na cela da criança, galgando-lhe para os braços, como sentia falta do seu calor.


— Sabia que virias por mim — afaga-me a cabeça junto às orelhas felinas. — Tenho medo, sabes?


Ronronei para lhe dar esperança, acariciando-a com o topo da minha cabeça junto ao rosto.

— Mas não perdi fé — sorri-me, apesar de encarcerada no inferno, a filha de Gaia continua a sorrir. — Tenho algo que preciso que entregues a um amigo.


Observo-a em curiosidade, quem será o amigo, que terá ela para esse ser?


Retira um amuleto, um colar prateado com a figura entalhada de dois anjos a protegerem uma rosa, enrola-o em volta da minha cabeça, sinto-me trespassado por melodia assim que o metal toca os meus pelos imundos, sinto-me indigno.


— Vai, queria-te aqui comigo, tal como queria o meu pai, mas vai, entrega isso ao que me salvou no outro dia, o homem da rosa-branca.


Entendo neste instante, agora tudo faz sentido, as rosas num jardim de pedra, a inconstância das batalhas entre o bem e o mal, os pratos em desequilíbrio.


— Ódin? — a avó, surge sempre nestes momentos, onde necessitamos de juntar todos os fragmentos para solucionar os puzzles. — Entra no buraco na parede atrás da minha neta, daí terás acesso às cavernas, segue a aura do meu irmão, filho e pai, ele é um dos paladinos.


Lambo o nariz da Mariana, e afasto-me em passo apressado, todos os olhos do infinito estão colocados no meu ser, um Deus esquecido em formato de gato a adentrar pelo abismo.


Corro como o vento, sou Éolos, Bóreas, Pégaso, vejo a aura a tornar-se cada vez mais forte, presencial, a distância encurta, as borboletas voam em redemoinhos de pânico, as cinzas do inevitável derrocam sobre a conceção irreal.


Estou a metros, oiço-os, adolescentes e adultos, acompanhados por uma raposa cor de fogo, rodeados por uma multicolorida aura de tranquilidade, ignoro quase todos à exceção do homem da rosa-branca.


Afago-lhe as pernas com a cabeça, ele baixa-se e remove o colar do meu pescoço.


— Temos que nos apressar — diz para os outros, enquanto me acaricia o dorso.


Sei que na cidade da noite eterna tudo é relativo, embora tendencioso muitas vezes para a malícia; todavia, existem Paladinos, seres com o intuito de a protegerem, tudo depende deles agora, tão pura e somente deles, estes que se encontram na minha frente, e os que ficaram para trás, Mateus e a Loba, para combaterem a relatividade.


 

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