Mais um conto da série, escrito por Carlos Palmito. Dessa vez Carlos explora a temática de Contos de Fadas e seus personagens, se parecerem familiares, é pura intenção.
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CONTO DE FADAS
por Carlos Palmito
IG: @c.palmito
Era uma vez um reino, onde vivia um príncipe que tinha os olhos verdes como limos a apodrecer nas margens dos lagos, e cabelo negro a fazer lembrar as noites destituídas de luar.
Enquanto criança adorava todas as princesas, imaginava-se a levá-las na carruagem do rei, seu pai, em direção à eternidade, amava cada uma delas de forma singular, na pureza do que simbolizavam.
Era uma vez um principie de olhos esmeralda, cabelo escuro, que queria beijar todas as filhas do mundo, todavia nenhuma delas o desejava beijar, mesmo que lhe brilhasse o olhar, ou o cabelo estivesse imaculado; sempre que abria a boca o mundo era inundado de morte; sofria de halitose que não desaparecia, por mais que lavasse os dentes, ou usasse pastilhas de menta e elixires milagrosos, a sua boca transportava podridão.
Era uma vez um principie, que cresceu e tornou-se o condutor de carruagens, onde conduzia todas as princesas em direção à perpetuidade!
Tocavam exatamente onze horas quando saí do abraço da Mariana. Sei, porque o sino da igreja as bramou na escuridão, tentando mostrar aos vivos que a jornada continua e o tempo corre; talvez para os apanhar entre as badaladas de um sino artificial, amplificado por colunas escondidas, como quase tudo nesta cidade de aparências.
Odiei ter que partir assim, sob uma lua que começava a ocultar-se entre os contornos das nuvens, mas tinha planos que não podiam mais ser delongados; o outro andava por aí a marcar território, e já adentrara na minha zona por diversas vezes. Imaginem a arrogância do ser.
Então, quando a criança foi finalmente tocada por Hipnos, e começou a percorrer os insondáveis mundos de Morfeu, emergi do saco-cama. Os músculos dela já não estavam tensos, a respiração mantinha-se pausada… serena.
Tive pena de a abandonar, deixar a solo ali perto do campanário, onde o pai montou o acampamento. Ela regressou apenas há duas noites, é uma constante, parte durante o dia num carro com estranhos, e volta sempre passado pouco tempo, a meio da noite, para que alguns dias depois o veículo retorne e a leve de novo.
Desta vez senti-a chegar dez minutos antes de a ver, juro por tudo o que é sagrado que consegui sentir o seu odor à distância, e, mal vi a sua silhueta contra o luar e corri para ela, perdi-me nos seus braços.
Se a amo? Sim, ela tem tudo o que existe de bom neste lado do mundo, é uma divindade que caminha entre mortais… representa a puridade no meio do esgoto.
Perscrutei com o olhar o céu, ia chover, isso tinha a certeza absoluta. Sentia a humidade a pairar no ar; olhei para trás, ela continuava quieta no saco-cama, apenas os cabelos acastanhados estavam de fora, não se ia molhar mesmo que a intempérie se abatesse neste local. O pai tinha tido atenção a esse pormenor; só existia uma coisa que ele amava mais que a bebida, e isso era aquela menina de cachos castanhos-claros.
Saltei o muro da abadia abandonada, daí pulei para a primeira árvore que vi, onde me sentei para refletir nos passos seguintes.
Sei que o invasor costuma andar pelo jardim, porém mais tarde, já o vi lá em diversas ocasiões, sempre à distância, desta vez esse espaço terá que ser removido, vou olhá-lo bem nos olhos, o presunçoso vai ver que a gato velho não se puxa a cauda.
Desci do tronco, sinto o vento passar em rajadas fortes, as nuvens no alto correm cada vez mais velozes, galopantes na selvajaria notívaga.
Começo daqui a caminhar em direção a becos e vielas, preciso matar tempo até iniciar a minha caça. Perco-me nos labirintos, vasculho tudo na expectativa de encontrar restos de comida recusada por humanos mal resolvidos, se algum dia sentissem fome a sério, duvido que recusassem estas iguarias.
Após quase uma hora de andar a revolver lixos, e fugir de pessoas a berrar, encontro uma peça de carne mal tocada. Sinto-me abençoado. Esta noite desfruto de alimento, contudo, sendo sincero, sempre que a Mariana está com o pai tenho comida, ela faz questão que isso aconteça.
Percorro mais umas zonas labirínticas, poucas desta vez, apesar de saber que não o vou encontrar por aqui, tenho uma vaga esperança que encontre.
Ouço ao longe o som do sino, doze badaladas, a mostra que há segundos atrás estávamos numa roda diferente das vinte e quatro horas desta nova que elas agora anunciam.
A chuva veio com o anúncio da meia-noite, pequenas gotículas inicialmente, todavia tenho plena consciência que isto é apenas o início; pressinto que vai ser um dilúvio, puxado a vento… os demónios andam à solta na cidade, e com eles ando eu.
Corro de volta, tentando passar entre as gélidas gotas kamikaze de chuva. Parece uma dança corrida, uma valsa entre mim e os deuses da chuva.
Quinze minutos decorridos, paro junto à avenida, do lado de lá está o jardim, tenho que ter cuidado, esta estrada já levou muitos que conheci ao longo dos tempos, incluindo a minha mãe. Somos invisíveis aos olhos dos condutores destas coisas a que chamam de viaturas.
Quando me vejo livre de perigo, após a passagem do camião, corro para o lado de lá e salto para dentro do jardim. Podia ter optado pela porta, mas preferi saltar a sebe… sempre fui ágil, mesmo com a idade que já tenho sinto-me ágil, talvez seja a adrenalina a falar por mim.
Uma vez nos perímetros da moradia de Vertumno, abrandei o passo, não posso cometer erros, apesar de usufruir da sabedoria da idade, e a perspicácia da caça. Sei que ele é novo, tem a plenitude dos músculos naquele corpo jovial, se não for eu a dar a primeira, o mais certo é ter que fugir.
Oculto pelas árvores, vou examinando a panóplia de cores misturadas com a chuva, uma fina cortina de água que se despenha, brilhando na parca luz dos candeeiros, mesclada na totalidade de cores das inúmeras flores que aqui vivem.
Mesmo no meio, onde quatro estradas de terra batida se cruzam, está um homem a fumar um cigarro encostado a uma estátua; parece nem se aperceber do que cai do céu; ele emite uma aura maligna, sinto os pelos eriçarem-se ao vê-lo… eis alguém a evitar.
Era uma vez um príncipe ao qual ergueram uma estátua, para jamais se esquecerem daquele que a todas amou, sendo nem uma única vez amado. A sua boca exalava podridão, tinha rancor nos olhos e ódio no coração.
Após uma análise mais atenta, constatei que o intruso ainda não se encontrava nestas zonas, mas indubitavelmente estava por perto. Decidi-me a sair do jardim, apesar da copa das árvores protegerem-me da chuva.
Entrei no primeiro beco, e… ei-lo, a revoltear desperdícios humanos… os meus pelos eriçaram-se, não de medo como quando vi o príncipe, (que príncipe?), mas sim de excitação.
Baixei-me, roçando a áspera e inundada calçada, não fazia mal, tudo pela caça, tudo pelo território, tudo pelo Alfa.
Nem deu por nada, saltei-lhe agilmente em cima, vitória, o primeiro embate foi meu, cravei-lhe os caninos no dorso, ele soprou de estupefação. Será que lhe cheirei medo? Parecia-me que sim.
Encarou-me de frente, com os seus olhos negros fixos nos meus com heterocromia, um verde o outro azul… rosnei-lhe, contemplei o pelo dele eriçar-se, tentar mostrar-se gigantesco para mim, fiz o mesmo, éramos o branco-sujo e o negro-lavado.
Sei que ele me reconheceu, (olá filho da puta) virou-me costas e saltou para cima de uma varanda, daí para o telhado, pulei eu mesmo no seu encalço, (gatos em telhados de vidro) hoje não me foges, quem pensas que és? Um rei usurpador?
Não lhe dei tempo de pular para o próximo, enterrei-lhe as garras no lombo, ele miou, rosnou, tentou atacar-me de volta, mas esquivei-me. Bastou um pulo para o lado, e engalfinhei-me com ele novamente. Rapaz, vais ter que aprender quem é o monarca desta zona.
Senti os dentes cravarem-se na minha orelha esquerda, o sangue começar a jorrar, enquanto as minhas unhas rasgavam as costelas dele, bem perto da omoplata.
Pelo canto do olho vi um humano a passar, de blusão negro. Esta distração custou-me caro, as unhas do meu jovem adversário rasgaram-me. Pelo e pele na cara; saltei mesmo na frente do humano, se ele não se desviasse num pulo, caia-lhe em cima, sendo agora eu, a presa e o negro-lavado, o predador.
Escondi-me atrás de umas sebes e esperei, ele passou, tão perto, sentia a adrenalina dele pulsante, mas também medo. Ah! Esse doce aroma de pânico, “estás fodido, rapaz”.
Saltei-lhe de novo para cima, parece o jogo do gato e do rato, mas jogado apenas com gatos. O beco mais se afigura a um pântano, escorrendo água sangue e pelo, rosnados e miados ao luar, (olá lua, voltaste?).
O jovem adversário estancou, tornou-se submisso, queria dar-lhe mais porrada, morder-lhe, arranhá-lo, mas a honra impediu-me, com o olhar ele agradeceu, sei disso, vi isso. Adeus, meu amigo, até à próxima batalha.
Pedro acordou, ergueu-se do solo enlameado numa flexão de braços, doía-lhe a nuca, cuspia sangue e lama.
— Que caralho é que aconteceu?
Era uma vez um príncipe que se tornou rei, na morte o monarca deixou-lhe um reino de couro, e um tablier de madeira.
Levou a mão à cabeça, sentiu-a empapar com algo viscoso, quente, mirou os dedos… sangue.
— Mas que porcaria é esta? Quem é que raios?
Nesse reino existiam sempre princesas que lhe viravam a cara, tapavam o nariz e riam-se dele, pobre príncipe que era a chacota de todos.
Apoiou-se no joelho direito, precisava de um ponto de apoio a ver se a tontura passava, olhou para a direita, junto às árvores, lá estava uma aranha pisoteada. A cara era uma papa de sangue e hematomas; via-lhe o peito a mexer, estava viva.
A vertigem acalmou, colocou-se finalmente de pé, na sua frente permanecia um ramo partido em dois, a arma do crime contra o rei que um dia foi príncipe.
Cambaleou em direção ao amigo, apanhou a faca que estava no chão e guardou-a.
— Não te preocupes Miguel, eu arranjo ajuda.
Daqui partiu para fora do jardim, em direção ao táxi oculto de olhares alheios numa viela; ia pegar no telefone.
Estagnou na entrada, viu uma cabine telefónica, pensou que seria melhor, assim nunca conseguiriam chegar até ele. Dirigiu-se para lá a bambolear, as forças a sumirem do corpo, em dores.
Levantou o auscultador e pressionou os três números, os que lhe salvariam o amigo. Após um compasso de espera, uma voz feminina atendeu do outro lado. (Será que são sempre raparigas do lado de lá da linha?)
— Boa noite! Vi agora mesmo um homem estendido no chão do jardim, parece bastante ferido.
Desligou de imediato, não queria falar mais. Voltou para o táxi.
— Odin? — esta voz fez-lhe estremecer o ânimo, era a voz de uma princesa.
Era uma vez um príncipe…
Após a vitória na batalha, Odin, o gato de pelo branco-sujo iniciou a sua caminhada de regresso a Mariana, queria passar o resto dos dias até a levarem de novo, junto à sua salvadora. Ia começar a correr quando lhe sentiu o aroma no ar límpido dos pós chuva. Misturado com o cheiro dela, existia podridão, não a normal da cidade, mas a podridão de um príncipe.
Correu na direção do cheiro, conseguia observá-lo no ar, tomar uma forma física, um rosa como o bar mais ao fundo, a ser absorvido por um roxo-escuro, (a cor do morto). Os pelos eriçaram-se de novo, medo, mas não se iria deixar dominar por ele; Mariana estava em perigo.
— Olá, menina, como te chamas? Posso ajudar?
Mariana sentiu o nauseabundo cheiro da boca daquele homem que estava na sua frente, viu-lhe a língua passar no lábio superior.
— O meu gato desapareceu — conseguiu dizer.
— Acho que o vi lá atrás, se quiseres eu levo-te no meu carro — respondeu o senhor-podridão.
Era uma vez um príncipe que mentia com todos os dentes que tinha para atrair princesas para um reino inexistente, e inúmeras vezes conseguiu-as levar, elas só se apercebiam quando o mundo que conheciam desaparecia através do vidro traseiro de uma carruagem amarela.
Odin soprou, rosnou a dois metros deles.
— Não é preciso, ele está ali. — Mariana apontou para trás do príncipe do lamaçal.
Ele nem desviou o olhar, prendeu o braço da criança de cachos castanhos-claros com a mão, como as mandíbulas de um pitbull sobre a sua presa.
Odin sabia que esta era uma luta que muito provavelmente ia perder, mas não podia permitir que um monarca nauseabundo magoasse a sua dona. Retesou os músculos, semicerrou os olhos. No momento em que ia para pular na cara daquele esterco ambulante, uma sombra desceu dos céus; foram apenas segundos, a sombra despencou sobre a podridão e ambos se dissiparam em pleno ar. Sobrou apenas Mariana a apontar para si… piscou os olhos.
Não fazia ideia do que tinha acontecido, mas ali estava Mariana intacta, um táxi vazio no beco com a porta aberta e mais nada, nem sequer a aura maligna, ou o odor a putrefação.
Acalmou, os pelos baixaram, saltou para o colo de Mariana a ronronar.
— Odin! — ela sorriu, afagou-lhe o pelo, e partiram em direção ao acampamento improvisado pelo pai, como se nunca sequer tivesse existido um príncipe num conto de fadas, ou maldade notívaga a deambular numa cidade esquecida.
Era uma vez um príncipe…
AUTOR
Carlos Palmito
A D O R O! Adoro o facto de ao longo do texto, ficamos confusos e vamos sendo esclarecidos... confusos, e vamos sendo esclarecidos... Dá vontade de ler logo tudo a correr!!! Parabéns Carlos
Gosto da mistura do assustador com um Conto de fadas. A tua noite é iluminada e inspiradora. Grata por teus escritos Carlos! 😍
Salve, Salve! Amigo Palmito.
Os seus contos me prendem a leitura. Obrigado por compartilhar as suas escritas.
Vamos mandar o endereço do consultório de um bom dentista para o príncipe de boca podre.
Voltou o felino!
Contos intrigantes, esquisitos, assustadores e, por que não dizer? Excêntricos!
Esse é o Carlos Palmito! Leiam! Vale a pena!
Segundo conto na temática das criaturas notívagas. Deixem o vosso like e comentários, like, caso gostem, comentários, para que com eles eu possa evoluir. Abreijos.