top of page

CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 31 — 08/02/2023

Foto do escritor: Luiz PrimatiLuiz Primati

A saga continua...


Faz muito que os gladiadores estavam prometidos à arena. Em redor, parasitas da sociedade clamam por sangue e diversão... Corpos desmembrados, crânios esmagados, quanta mais dor e miséria será necessária para aplacar a fome de uma cidade que em tudo parece insaciável.


Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.

Created with Generative AI - Midjourney
 

AUTOR CARLOS PALMITO


Nasceu na cidade de Évora, Portugal. Aprendeu a ler e escrever antes de iniciar a escola, por força e dedicação da sua mãe. Trabalha na área de TI, apesar da sua verdadeira paixão se encontrar na escrita, sendo nela que despende grande parte da sua energia. O primeiro livro que leu, e um dos que mais o marcou foi “O Conde de Monte Cristo”, teria sete a oito anos na altura, mas desenganem-se se pensam que ele se fixou só por romances, pois ele lia de tudo, desde banda desenhada a livros de geografia. Durante o seu percurso na escola, foi convidado a ingressar no jornal escolar, odiou esta parte, aqui descobriu que adora escrever ficção, mas odeia escrever sobre realidades. Tem como autores favoritos Alexandre Dumas, Júlio Verne, e o que considera seu ídolo e inspiração, Stephen King. Considera-se um apaixonado por letras, filosofia, psicologia e arte em geral, este autor desde cedo que começou a rabiscar contos e poesia. A sua criação hoje em dia rasa a loucura e a lucidez, a harmonia e o caos. Autor no blog https://allinone.blogs.sapo.pt

 

CHOQUE DE TITÃS


Portão fechado. As suas juntas chiaram por toda a divisão, acordando os fantasmas dos mortos que serviram a pátria, a nação valente de um reino em decadência.


Primeiro sobraram memórias, depois simplesmente o esquecimento permaneceu.


— E no canto esquerdo, envergando o fato divino que os seus pais lhe ofertaram à nascença, temos o homem das ruas, sem-abrigo, futuro cadáver deste nosso humilde estabelecimento.


Gargalhadas ribombaram pela divisão, pérfidas, grotescas, vindas do fundo de gargantas que já tudo engoliram, ressoando através de dentições podres, alimentados a heroína e álcool.


A primeira coisa que Mateus sentiu foi um sabor férreo no palato, passou a língua nos dentes, notou a falta de dois, e tinha pelo menos mais três rachados, com bicos aguçados capazes de rasgar montanhas.


— Agora, no canto direito, vestido de negro, temos o gigante, o capataz do próprio senhor dos infernos. Façam as suas apostas, quem vive? Quem morre? Quem sai gloriosamente pelo portão da arena, e quem sai simplesmente num saco preto?


A segunda coisa, foi uma dor fulminante na têmpora. Na sua reminiscência existiam fragmentos de uma descida vertiginosa, uma guerra em Sodoma e Gomorra, uma batalha sangrenta, e depois… estrelas, todas as estrelas do universo a cantarem em coro na sua cabeça. A explosão de uma granada sensorial, que lhe mesclou o divino com o diabólico, ambos num cálice de sangue para o pai de um Deus qualquer beber.


— Informo que esta noite será de bar aberto.


Gritos de urra irromperam na masmorra.


— E não é que acreditaram? Quem não paga, não bebe, meus anormais — lamentações sobrepuseram-se ao êxtase.


Abriu os olhos, as luzes da divisão cintilavam lembrando diamantes expostos ao sol de uma terra que jamais contemplou o dia. O mundo encontrava-se turvo, desfocado, eram apenas vultos de abutres em volta de um animal a definhar, jornalistas na porta de um hospital onde o Deus de olhos azuis morria. Quem é a Mariana?


— Olá, meu caro — a voz era a de uma criança, Mateus esforçou-se para fixar o ponto. Gradativamente a figura começou a ficar nítida. — Faz muito tempo que esperava por este momento — a pessoa na sua frente sorria, gigante em tamanho, mas com umas cordas vocais esganiçadas. — E vou adorar cada segundo da tua dor — passava as mãos numa cicatriz na face. Mateus recordou. É ele, o assassino das rosas, de Gaia, é ele. Instintivamente procurou a sua adaga, e só nesse instante se apercebeu do fato de estar nu, dentro de uma prisão no meio de uma taberna, despido como quando o universo se formou.


— Assassino! — vociferou Mateus. Os malmequeres foram pintados a vermelho naquela noite, séculos atrás, numa outra era. — Hoje morres, não morreste antes porque a velha te poupou, mas hoje garanto-te — era raiva pura de um desejo insano a sangue que emanava da voz do velho de olhos cinza. — Hoje morres.


Garrafas foram atiradas contra a jaula de ferro, copos, cuspe da prole infernal. Berravam contra ele, insultavam-no.


No íntimo, Mateus sabia que o que desejavam era ver as suas entranhas espalhadas no chão daquele recinto nojento.


— Hoje, no ringue da morte, só temos uma regra, a mesma de sempre — os espetadores ouviam o locutor atentamente, como se ele fosse o deus das ratazanas. — Só um sai vivo, ou não sai nenhum.


As apostas começaram a ser feitas, dinheiro a circular na caixa da miserável taberna, que já tantos levou para as profundezas do vazio cósmico. Ninguém chora os sem-abrigo, nem uma única alma se recorda deles. Quando forem, vão.


O mestre de cerimónias abandonou então a jaula. Dino sorria que nem um símio enlouquecido, no brilho do seu olhar existiam sonhos de lobotomia, lamentos de viúvas nascidas dos seus punhos e a lâmina damasco de uma faca a rasgar-lhe a face, deixar uma marca permanente, inclusive no próprio osso.


— Vamos dançar! — Dino flexionou as pernas, semicerrou os olhos, baixou o tronco, e investiu como numa marrada, contra Mateus. Um rinoceronte em ataque.


O velho desviou-se por instinto puro, memória muscular que se ativou antes da racional, rebolou no chão para a esquerda, ouvindo o baque do corpo do seu oponente contra as grades.


— Falhaste, bosta humana — grunhiu.


— Mas não falhei a tua vaca, pois não? De quantos meses estava? — retorquiu Dino.


Fumo dançava ao gélido luar, oriundo do sangue de um corpo esquartejado num campo de malmequeres, a face pálida contemplava a lua, nela desenhavam-se coelhos e caçadores, alcateias a prantear a deusa que morrera, em uivos lamuriosos num barco naufragado.


— Filho da puta! — Mateus ergueu-se cambaleante, ainda sentia a têmpora a latejar, o que quer que o atingira na luxúria, fora possante.


Ao perceber que o seu adversário ainda está encostado junto às grades que dobraram ante o seu ataque, salta-lhe para as costas, enrola os pés abaixo do peito de Dino, envolve-lhe o pescoço com o braço direito, prendendo-lhe a traqueia na dobra do cotovelo.


Dino entende o que lá vem, a gravata, tenta evitar a todo o custo, mas nesse instante já a mão direita do velho está agarrada ao seu braço esquerdo, afincadamente, com as unhas a cravarem-se nos bíceps nus, de onde o sangue escorre viscosamente.


O verdadeiro mata-leão aplicado a um símio com a força de um rinoceronte.


O gigante esbugalhou os olhos, teria pouco tempo para sair do ataque, ou sufocaria.


— Aposto todo o meu dinheiro no velho! — gritou alguém na multidão.


Usou as grades como ponto de partida, e lançou o corpo para trás com uma velocidade absurda, indo direto para o outro lado do ringue, onde colidiu com Mateus. A dor causada apagou-lhe a luz momentaneamente, mas não largou a presa, não abrandou a robustez com que aplicava o golpe.


— Ela estava de sete meses.


Dino, ante a persistência do homem de olhos cinza, voltou a arremessar o seu corpo de encontro aos ferros, Mateus sentiu um osso a despedaçar, pelo menos uma costela tinha morrido naquele ataque desesperado. Mordeu o lábio inferior com um dos seus dentes rachados, para evitar o grito, do qual um fio rubro nasceu e desceu pelo seu queixo. Afrouxou o abraço mortal ao gigante, e caiu desamparado de costas.


O colosso ficou momentaneamente a arfar, tentando desesperadamente recuperar todo o oxigénio que lhe havia sido impedido de inspirar, enquanto Mateus permanecia agarrado às costelas direitas, cuja dor lembrava um ferro em brasa a penetrar-lhe a carne, até, quem sabe, a própria alma.


— Armas. Armas — gritava o público, ávidos por sangue, como sanguessugas no quarto do menino de olhos azuis.


— Não — vociferou Dino, os seus pulmões continuavam a exigir ar, a respiração ofegante, mas quase recuperada. — Hoje somos nós as armas — baixou-se, segurou o velho pela garganta e ergueu-o no ar, com apenas um braço.


Mateus entrou em desespero, ao sentir os dedos do oponente a esmagarem-lhe a traqueia, tentou esmurrá-lo, mas os seus braços eram curtos demais. Optou por socar o antebraço de Dino, porém a posição em que se encontrava não lhe dava alavancagem suficiente para o golpe ser eficaz. Enterrou-lhe nesse caso as unhas nos músculos, numa tentativa fútil de lhe esfrangalhar a carne, contudo era como se fosse papel a tentar cortar uma tesoura.


Por uma segunda vez, as luzes transformaram-se em diamantes e as pessoas em vultos disformes. Estranhamente teve uma ereção. “Vais ser pai, meu amor! Um menino e uma menina!”. Foram gémeos, eram gémeos.


— Estás morto, homenzinho! — ronquejava o símio rinocerontesco.


— Seriam gémeos meu cabrão! — berrou. Onde estaria Mariana? Ter-se-ia esquecido dela, agora que vivia as suas batalhas contra fantasmas?


Fixou as mãos nos pulsos de Dino, e forçou o seu corpo a colocar-se na horizontal, lembrando um trapezista. A costela fraturada rasgou-lhe músculos internamente, sentiu na boca o sabor acre do sangue, que gotejava por entre os lábios. Fletiu os joelhos contra o próprio peito, e esticou as pernas ao máximo que podia, na velocidade estonteante que as suas dores permitiam, se os braços não chegavam lá, os pés chegariam. O esquerdo atingiu o gigântico ser das cavernas no nariz, sentiu-lhe os ossos a quebrarem, estilhaçarem como vidro. O direito, acertou Dino na face, na cicatriz que na noite dos malmequeres rubros, a sua cantora lírica havia traçado.


Dino largou-o, levou a mão ao nariz que sangrava abundantemente, uma cascata escarlate irrompia do dique do que segundos atrás eram as suas narinas, guinchou como um porco no matadouro.


— Vais morrer — apontava para o velho deitado no chão.


— Armas! — exigia a população da masmorra.


Em fúria, o homem com voz de criança pontapeou o chão onde se encontrava Mateus, um pé de tamanho cinquenta e três propulsionado por um corpo de cento e noventa quilos, pura massa muscular. Atingiu o vazio, o velho rebolara para a direita, levantou-se e pulou para trás.


Dino socava agora o vazio, numa raiva desmedida, o velho, como ele o odiava, o único que lhe conseguira tocar, o único que o marcara. O traço no seu rosto servia como prova.


Gancho de direita, gancho de esquerda, murro frontal.


Mateus esquivava-se, dançando, desviando-se, sentia a deslocação de ar passar perto e sabia, um daqueles em cheio arrancar-lhe-ia a cabeça. Esperava a abertura, rezava para ela chegar antes que desmaiasse das dores provocadas pelas costelas.


— Armas! — cheirava a cerveja e suor azedo. — Armas! — ouvia metal a cair na arena. — Armas! — e ela brilhava, a sua cantora brilhava no chão da arena, abandonada, desprezada. Alguém a tivera atirado para o ringue.


Dino também a vira, tal como o martelo de guerra na outra extremidade. Mudou a postura, estava cansado, demasiada energia consumida no irrefletido ato de ódio, de tentar esmurrar um homem que conhece todas as artes da guerra.


Com o olhar cinza vidrado no punhal como um namorado a contemplar a venustidade da sua amada, baixou a guarda. As distrações custam vidas no campo de batalha, assim germinam mortos.


O símio não poupou, meteu-lhe a mão em cima, agarrou-o com a força de um torno elétrico, arremessando-o em direção ao gradeamento situado frontalmente ao balcão.


Mateus voou desamparado colidindo violentamente contra as grades, sentindo-as encurvar perante o impacto. Custava-lhe cada vez mais respirar, sentia a garganta inundada com uma viscosidade que o tentava afogar, o seu próprio sangue. Provavelmente tinha um pulmão perfurado. Ergueu-se, cambaleante que nem bambu ao vento. Como seria o bambu?


— Sem armas — berrou Dino. Baixou o torso e investiu uma vez mais como um rinoceronte em direção ao velho exausto.


Este desviou-se para a esquerda, lembrando um toureiro espanhol, e aproveitou o momento para pontapear o colosso nas tíbias, desequilibrando-o.


Na queda, Dino conseguiu agarrar Mateus, ambos abalroaram o gradeamento, que se quebrou ante o esbarro, estatelando-se, homem nu e besta mortal na imundice da taberna.

Ergueram-se, os apostadores afastaram-se.


— Armas! — sussurrava o fedor a fezes.


Dino tinha uma barra de ferro a trespassar-lhe o baixo ventre, resquícios das grades da arena.


Mateus tinha as costas rasgadas, de onde o sangue jorrava incessantemente, pingando o pó milenar da masmorra. A morte era irreversível. As suas derradeiras forças reservou-as para se propulsionar contra o orangotango, derrubando-o sobre a mesa principal do bar. Encostou-lhe o pescoço ao balcão, e pressionou com o joelho, asfixiando-o. Dino estava sem forças, nem resistiu… apenas murmurou palavras desconexas, e ejaculou nas calças antes de morrer.


Mateus sentou-se nu, no banco à esquerda do gigante, sentindo o espinho da sua rosa cravar-se fundo na alma. Tinha plena consciência que visitaria Gaia em breve.


— Mariana! — murmurou para o vazio… desfalecendo em seguida.


Alguém entrou pela porta principal, desviou a cabeça do gigante de olhos vítreos, fixos nas garrafas empoeiradas dos planaltos artificiais da taberna, de cima do balcão. Um rio de sangue e baba pegajosos, fumegantes, acompanhou o tombo de Dino, a última viagem do colosso com voz de criança.


— Joel, quero um shot de tequila.


O rapaz do lado de lá do balcão que poderia, ou não, chamar-se Joel olhou estupefacto, encheu um copo com tequila, colocando-o em cima do rio escarlate.


 

25 visualizações1 comentário

Posts recentes

Ver tudo

1 bình luận


Carlos Palmito
Carlos Palmito
08 thg 2, 2023

Bom dia! Quente no brasil, frio no meu coração. Não me odeiem pelo que fiz nesta história, neste capítulo, no futuro verão a necessidade de o ter feito. Dúvidas que tenham, perguntem, todas e mais qualquer uma. Responderei, desde que não sejam perguntas sobre para que direção estou a guiar o romance. Beijaços . BEIJ(os)(abr)AÇOS


Thích

VALLETI BOOKS

Rua Dr. Cardoso de Almeida, 2581 - Botucatu - SP

CEP: 18.602-130

valletibooks@gmail.com

© 2023 by VALLETI BOOKS.

bottom of page