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CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 20 — 24/08/2022

Mais um conto de Carlos Palmito. E a aventura continua, agora o personagem que toma a cena é a filha de Gaia. Será que por ser filha de um deus, Mariana estaria protegida de todos os males? Descubra... Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.


Leia, Reflita, Comente!

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FILHA DE GAIA


por Carlos Palmito


Pessoas a vaguearem na noite, as luzes cintilantes de estrelas aprisionadas em vidros, eletricidade a expurgar a escuridão, conseguirá ela mesma expulsar a violência do homem?


Mariana estava deitada, ouvia as sirenes de carros, formigas obreiras no universo desta cidade, faz muito tempo que rugiam, furiosas, tal como a sirene dos bombeiros.


A janela encontrava-se fechada, no teto existiam constelações desenhadas, não era a mesma coisa que na tenda do pai, mas era como matava a saudade, como aguentava os dias que antecediam a fuga.


Esfregou os olhos, não queria adormecer, levantou-se, entreabriu a porta do quarto, era aconchegante, não tinha bonecas nem brinquedos, apenas luas, estrelas, fogos incomensuráveis vindos de vidas que há muito se extinguiram.


No corredor somente existia penumbra, o coração martelava-lhe num compasso rápido, como um comboio em fuga (de que fogem os comboios? Quem os amedronta?), abriu a porta da cozinha, atrás de si, misturado com o uivar aflito dos bombeiros, ouvia o ressonar daquele que tentava ser seu pai.


Fechou cuidadosamente a porta, olhou para a varanda, era hoje, queria Ódin, o Deus dos gatos, queria o seu pai verdadeiro, ver-lhe os cabelos brancos, ouvir-lhe o riso, a voz rouca, queria senti-los, estar perto, liberta das prisões de betão que são os apartamentos.


Das costas da cadeira, junto à bancada da cozinha, retirou a sua mochila, já tinha as provisões, estavam lá quase desde o início da noite, quando os seus falsificados pais (amava-os, mas não eram seu sangue) estavam na sala a ver um filme (odiava aquela caixa aprisionadora de almas).

Protegeu o cabelo acastanhado com um gorro rosa, sempre gostou da cor, e tantas são as cores que as rosas possuem.


Abriu a porta da varanda superior, saiu para a noite, as cores predominantes eram laranjas e azuis, o vento era frio, a chuva inexistente, sorriu perante o quadro do supremo e do divino, a lua, aparecia ocasionalmente entre nuvens de fumo e pirilampos incendiados.


— Vou a caminho, pai!


Pulou a proteção da varanda para uma árvore que se encontrava perto, Gaia concedia-lhe formas de escapar, concedendo-lhe árvores, escadas naturais enfiadas numa cidade artificial, Nix protegia-a com as sombras, e Ódin ronronava-lhe do outro lado da metrópole.


Do galho saltou para o chão, a erva estava aparada, era doce o aroma, contrastando com o resto da podridão nesta conjuntura de seres humanos apertados numa caixa de Pandora.


— Até já! — pronunciou enquanto contemplava a casa, uma vivenda como muitas outras neste local aparatoso, cheio de cores e arrogâncias, saberes de gente que nunca passou fome, nem frio.


Apertou as alças da sua mochila, e iniciou a peregrinação, o caminho que sabia de cor, que conhecia da mesma forma que uma mãe conhece os diferentes choros do seu recém-nascido.

— Aqui é fome! Este aparenta ser frio! Aquele outro é apenas para chamar a atenção! Agora tem a fralda ensopada! — uma mãe sabe, tem que saber, e acima de tudo, muito provavelmente pelo elo rompido do cordão umbilical, ficou um muito mais forte, espiritual. Uma mãe sabe sempre.


Desceu a rua principal do alto da sua cidade, acompanhada de longe por uma Deusa sentada na mais alta das montanhas lunares, a protetora dos inocentes, dos Deuses que são crianças e das crianças que são Deuses.


— Um dia, meu raio de sol, desceremos o rio — era a voz do pai na sua mente, a brincar com memórias e recordações, raio de sol numa cidade perdida na noite, que melhor elogio existirá, senão o do nunca alcançável. — E lá, mesmo na orla da criação de dormitórios humanos, transporemos a realidade, sairemos desta prisão.


Cortou no segundo beco, entrou na escuridão, onde existiam candeeiros partidos, falsificações solares chacinadas pelas divindades da noite, neste local bramia o vento, Éolos, o dançarino da conspurcação.


Ainda se ouviam sirenes, poucas agora, provavelmente todas estariam na sua reunião, onde quer que fosse, a combater a violência, a demência, a salvarem humanos de si mesmos.


— Como era a mãe? — tanta vez que perguntou ao pai, não se recordava dela, do aroma do seu perfume, da cor do cabelo, da melodia vocal, sabia que a teria, tinha que ter tido, todo o ser nasce de um ventre, até mesmo as estrelas.


Antes da finalização da viela cortou por outra, mais apertada, aqui cabia apenas uma pessoa de cada vez, foi Ódin quem lhe mostrou este atalho, num sonho febril, onde o gato falava e as folhas dos plátanos dançavam em conjunto com as estrelas.


— A tua mãe era fogo e água, loira e ruiva no mesmo instante — assim era a descrição, assim foi o desenho que lhe fez num papel amassado, onde na parte frontal se lia “O fim está próximo.”. — A sua voz era uma cascata, melodiosa e harmoniosa, os olhos estrelas vivas, o seu nome é Gaia, és filha da natureza, e para lá teremos que retornar.


Quando o atalho findou, pulou a pequena sebe que lá se encontrava, caminhou em direção ao portão principal, da mochila tirou um pedaço de frango cru envolto em papel de alumínio, desembrulhou-o como se fosse um doce, sentiu movimento, estancou.


— Prometes que iremos embora pai? Para longe? Não gosto desta caverna, desta cidade — pedia ao homem de cabelos brancos e barba afável.


Das sombras surgiu um cão, grande como o dragão criador de rios, esperou, o animal correu para ela, susteve a respiração, tudo vai bem na cidade do pecado, as estrelas morrem, os anjos perecem, a Deusa mantém-se em solidão na lua… e o sol jamais morreu, pois nunca nasceu.


Não ladrou, nunca ladrou, apenas parou junto a ela, com o olhar fixo no coração da menina das mil rosas e da chama eterna, a única amiga de um Deus, por vezes, ela ouvia-o falar, balbuciar, o Deus da cidade, o senhor do imutável saber, e detentor das melhores dicas.


Foi ele quem lhe falou no frango, que ela desembrulhava com a calma que apenas a inocência consegue ter, enquanto um monstro guardião das profundezas infernais estava sentado na sua frente.


— Aqui tens Cérbero, a minha oferenda pela passagem — o cão cheirou o ar, absorveu os odores da noite, dos perfumes divinos de podridão e frango cru, do bálsamo das rosas e da derme da criança.


Pegou gentilmente no peito de frango, e regressou para as sombras, o pagamento estava efetuado, a dívida saldada, poderia então a cria dos deuses (Deuses?!) continuar o seu percurso, conhecia-a, mesmo que ela não trouxesse a prenda, conceder-lhe-ia passagem segura.


— Até já, irmão! — na casa de Gaia todos provemos do mesmo local, da mesma criação, desde a terra aos astros, desde a criança ao cão, da árvore ao urso, todos somos irmãos nesta união caótica.


Abriu o portão exterior, para além das terras do canídeo; na sua frente apresentava-se a avenida no esplendor máximo, os carros que circulam, os faróis e a sonolência dos seus condutores, o fascínio pela finidade da estrada que circula e jamais se interrompe.


Num dos lados existia um flamingo, detinha as cores do gorro de Mariana, uma animação colorida, néons na cidade do pecado, os novos deuses, o dinheiro, a ganância, a escuridão e a conspurcação da luz, tudo pela falsa segurança… é mau o homem, é cruel o Deus, é quente a terra de Gaia.


— Pai?


— Diz Mariana? — enrolava um cigarro, a garrafa de vinho continuava intocada, era sempre assim, a filha da natureza prevalece sobre a falsidade de Baco.


— O que aconteceu à mãe?


Ele nunca lhe respondia, não à filha da aurora, o último vestígio de sol na terra da escuridão.

— Um dia, raio de sol, iremos em busca dela, os homens esquecem os Deuses, mas eu e tu, não somos homens comuns, pois não?


Ela ria, mesmo sem compreender ria, e o rio continuava a sua jornada.


Desceu a avenida, consultou a sua tabela mental, parou junto ao semáforo; vermelho para parar, verde para caminhar, esperou o apito para os cegos; em terras de cegos o caolho é rei, o vermelho piscou, e mudou, tornou-se verde, a segurança da cor dos prados da sua mãe, atravessou.


No outro lado existia o jardim, prisioneiro de muros e sebes, arbustos vistosos, mitologias esquecidas, heróis na danação do inferno notívago (como podem as flores subsistir na eternidade da escuridão, tendo como único banhar a pálida luz da lua?).


Entrou, caminhou por entre árvores e flores, rosas, cravos, orquídeas, ouvia os pássaros nos galhos acima da sua cabeça, na lua a Deusa continuava atenta à menina da aura rosa, no lago do jardim os patos dormiam, alguns flutuavam nas águas, aqui é inocência e traição.


Sempre amou o jardim, os odores, as abelhas (de noite?!) que voam de flor em flor, Gaia a mostrar que pode até ter sido esquecida, mas o seu trabalho continua, a natureza cura-se a si mesma… conseguirá ela expurgar os parasitas que a consomem?


Lembra-se de ter acampado com o pai uma noite junto ao rio, ele fez-lhe uma coroa de flores e um cetro de realeza, eram malmequeres e mais umas silvestres, poderia até recordar, as amarelas, as roxas, as vermelhas, os aromas, tudo vai bem em terras de anjos.


Coroou-a ali, ajoelhou-se perante a sua rainha.


— És o raio de sol nas terras de devastação, filha de Gaia, cuidada pelo homem, coroada por um cavaleiro caído em desonra. Batizo-te aqui, Mariana, não com água, mas com flores, pois és filha dela, e a senhora da lua irá eternamente olhar por ti.


Antes de chegar à encruzilhada, colheu uma flor.


— Obrigado mãe, por esta dádiva!


No centro, existia uma estátua, contemplou-a com maravilha, os olhos cintilavam, as estrelas brilhavam, diamantes na coroa universal, pousou a rosa escolhida aos pés de pedra do patrono da universalidade, uma tradição do seu pai, e continuou o caminho.


Ao sair do jardim, voltou a entrar nos becos, nos desperdícios, na lama e imundice.


— Nada é verdadeiramente sujo, Mariana — a voz era feminina, uma que conhecia, a velha dos sonhos, a velha que lhe afagava o cabelo encaracolado enquanto dormia ao relento. — Olha com atenção ali, que vês?


Nessa noite observou atentamente, um caixote do lixo, moscas, lama, desperdícios do homem que esqueceu Deuses, o odor era nauseabundo, fechou os olhos, e sentiu-lhe o aroma, flores, a primavera daquela que se foi, a verdadeira rainha.


— Por vezes, alguns precisam de chuva, outros de amor — ouviu um miar, um gato branco de olhos coloridos, um verde, o outro azul. — Apresento-te Ódin.


Uma oferta da avó, gato branco sujo, saído do lixo, e que a passou a acompanhar, atração imediata, dois filhos da natureza unidos pela imundície.


Ao longe, os sinos repicaram as horas, poderia contar, saber quantas seriam, mas não interessa, a noite é eterna, o tempo curto; os passos necessitavam de se apressar, nas paredes existem dragões, nas cavernas da perceção de uma criança a impossibilidade torna-se uma realidade, filha de realezas…


O livro da existência ia no tomo vinte e três, falava da filha de Gaia, e a criança começou a correr, os bombeiros estavam calados, os pirilampos apagados, ao longe, numa outra cidade prisioneira de si mesma, tal como esta, ecologistas tentavam proteger a sua mãe, sobravam apenas ecos.


Finalmente chegou ao fim do último beco, conseguia ver o campanário, as tendas dos sem-abrigo nesta cidade que ninguém alberga e a todos corrói, mesmo sem o ver, sentia o gato, estava perto, correu para a tenda das nebulosas eternas, filha do universo.


— Pai? — apenas o vento respondeu, o vazio, o irreal. — Pai?


Os seus ouvidos captaram um chiar, eram as rodas do carrinho do seu pai, saiu da tenda, o odor nestes acampamentos é quase sempre de desistência, mas não o perfume do homem dos cabelos brancos, esse tem fé… melancolia nos olhos, crença na alma.


Atravessou a estrada a correr, como uma criança atrás da bola, sem olhar, desatenta a tudo menos ao som do carrinho do seu pai, misteriosos são os caminhos de um Deus que escreve direito por linhas tortas.


Na lua, a Deusa levantou-se, no outro lado do espelho da realidade a avó abriu os olhos, despertando para um pesadelo.


Mariana não o chegou a ver, apenas ouvia, cada vez mais perto.


O vento uivou, junto ao rio a raposa sabia que o alvo tinha sido apanhado, choraram os anjos no infinito, lágrimas da realeza, as brocas perfuraram fundo o coração da mãe da criança, e o gigante com voz de criança saiu do carro, agarrou a miúda como um leão abocanha a sua presa.


Ela olhou para o rosto de quem a impediu de chegar ao seu pai, o colossal que a segurava, e que lhe tapava a boca com um pano imundo, impedindo-a de pedir socorro, sorria o monstro de cara retalhada… desmaiou, clorofórmio.


Ódin soprou, assanhou-se, correu, o homem dos cabelos brancos pressentiu, sabia o que tinha acabado de acontecer, ouviu o chiar de pneus, e viu um carro arrancar, na matrícula existia apenas uma rosa negra, em Ódin desespero.


Gaia enfureceu-se, trovoadas ribombaram no universo, sismos e cataclismos tiveram lugar no mundo, o oceano agitou-se, diluviais foram as chuvas, enraivecido o estremecer da existência, e irado o grito da mãe de todos nós, enviado pelo vento e pelo maremoto.




AUTOR

Carlos Palmito

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