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CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 19 — 17/08/2022

Mais um conto de Carlos Palmito. Essa é a quarta e última parte desse conto que mostra Jéssica, uma aprendiz de anjo. Saiba como essa história termina. Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.


Leia, Reflita, Comente!

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PARA PROTEGER E SERVIR


por Carlos Palmito


Parte 4 — Filha de ninguém


“… feminino, totalmente dilacerado. As autoridades acreditam que tenha sido um ataque de urso, contudo não avançam com mais detalhes.


Contínua a busca sobre a identidade da adolescente.


A descrição segue acima, tal como um retrato robô de como seria. Se alguém a conhecer entre em contacto com as autoridades locais.”



* * *


— Jéssica, vamos.


Ela estava atónita, os olhos percorriam o corredor; do teto caiam pingos de água gelada, condensação da eternidade notívaga, a noite no inferno por vezes tem essa qualidade, congelar o plano absoluto dos seres vivos.


Abrandou na primeira curva, queria manter-se perto do tutor, o seu mestre de anjo, mas não conseguia, as pernas afrouxaram, até que parou por completo.


Observou tudo a seu redor, como poderia chover dentro de uma caverna, no coração da mais frágil das crianças?


Nas paredes cresciam rosas, mais uma impossibilidade existencial, subiam ao teto e desapareciam pelas paredes, fundindo-se com a rocha, umas brancas como a candura, outras negras a exalarem maldade, será possível uma flor ter maleficência?


— Que se passa? — Samuel estava preocupado, sabia que a entrada no coração da cidade iria ter repercussões na mente da neta que não era sua.


Ela sentiu uma lágrima brotar-lhe da alma, da memória, dos tempos que foram removidos como um sopro para proteger a sua inocência… mas uma tatuagem é para sempre, e esta ganhava força uma vez mais.


Inspirou o ar doce, profundamente, deixou-se embriagar pelo odor de rosas, pela derme dela… na sua axila uma pétala criou vida e penetrou-lhe a lembrança, a lágrima saltou para o exterior. Estaria ela realmente preparada?


— Jéssica?


* * *


— Jéssica? Porque ainda estás vestida, anda. A água está fantástica!


A rapariga que a desafiava mergulhava nesse momento na vastidão do rio, o negrume que tudo engole, refletindo as estrelas de uma noite de verão.


A lua sorria, a noite é dos poetas, a ruiva filha de bruxa, descente de recordações presenças e omnipresenças.


Ao longe piam as corujas, no rochedo está Jéssica, menina de treze anos, as férias servem para brincar, na cidade foge-se pela janela do quarto e entra-se num mundo desconhecido.


Bem-aventurados sejam os desbravadores neuronais da perceção infantil de um Deus.


A atravessar o rio existem escombros, possíveis reminiscências de um mundo paralelo, a ponte que liga o real ao irreal, atravessa mundos e portais, a entrada da cidade que todos rejeita, incluído o sol, e que nenhum deixa partir, abrangendo a Lua.


— Vou já Luísa. — Lutava contra os atacadores das botas, sempre as preferiu a umas simples sapatilhas, maria-rapaz.


A rapariga do cabelo de fogo mergulhava uma vez mais, ouvia-se o chapinhar de água, o negro rio refletia prata sob a ondulação provocada pela sereia dos caracóis ardentes alumiada pela lua que estará sempre lá.


A noite é dos amantes e das crianças, pois nelas existe purificação e no rio o batismo, a crucificação foi da avó; que as águas que correm para além das muralhas intransponíveis de um mundo inventado expurguem o decapitar da inocência.


A primeira bota voou, cheira a rosas em terra de espinhos, a segunda ficou no rochedo. Éolos brinca com os negros cabelos de Jéssica, despiu o vestido azul e saltou da sua plataforma criada por Gaia, plantada para anjos.


Aterrou e correu em direção ao dragão azul, (são os dragões quem criam os rios, não são?) sentiu a água arrefecer-lhe o espírito, e submergiu na criação de Deuses, abriu os olhos debaixo do líquido amniótico lá dentro tudo cintilava, estava protegida.


Luísa procurou-a, as águas agitavam-se, bolhas emergiam aqui e acolá, ele surgiu nas traseiras da amiga, para além da abrangência dos olhos verde da sua companheira de nascença.


— Estou aqui, parva!


No astro uma estrela mudou de local, desenhou um risco no papel de parede das deidades esquecidas, e fundiu-se com o vazio, deixando de brilhar. Assim morrem os anjos.


A amazona do olhar esmeralda voltou-se, a sua crina reluziu na noite, sentiu as mãos da amiga pousarem-lhe na nuca e obrigarem-na a afundar-se nas lágrimas divinas do rio que todos leva, para onde, ninguém sabe.


O mundo termina na fronteira da cidade, para além dela, apenas subsiste o nada.


Debaixo de água abriu os olhos, encontrou o alvo, as pernas de Jéssica, segurou-lhe os tornozelos e puxou com força, conseguindo nesse ato tombar um celestial, afundá-lo na pia batismal do abismo.


Emergiram as duas em simultâneo, a noite estava quente, o ar transpirava e elas respiravam, riam, lançavam água uma na outra, nadavam para longe, e depois para perto, no fundo, um barco escondia segredos, algures na plantação memorial da salvação, a avó sorria.


A noite, é dos poetas, e nela tudo é poesia, desde a maresia que esfria as escaldantes almas amantes do mundo, até ao rosnar baixo de uma besta que se esconde e observa, esperando a altura, o momento certo, passando pelo cantar dos grilos e a luz dos pirilampos.


Começaram a ficar cansadas, o nadar e o correr, o fugir, os jogos de apanhada, os despiques de velocidade, de tempo sem respirar, o cuspirem água uma na outra, fogo e carvão, Luísa e Jéssica.


Nadaram em direção à margem, a fronteira entre o líquido e o sólido, entre as lágrimas e os punhos, subiram a rocha onde repousava a roupa desprovida de corpos, casulos de lagartas cuja metamorfose as transformou em borboletas, a lua sorria e a besta rugia.


Deitaram-se, sentindo o morno do rochedo aquecer-lhes as costas desnudas, a contemplar a imensidão cósmica, sagitários e capricórnios, ursos e semideuses, anjos a definharem na solidão de todos os outros, esta é a casa dos deuses, brindemos com champanhe.


Por todo o lado existia Gaia, por todas as cigarras que cantavam, na água que deslizava, nos patos, nas rosas inexistentes, nas gengivas sem dentes da avó, no contemplar selvático do mundo. A mãe de todos, filha da avó.


— Acreditas em Deuses? — Luísa apontava para as estrelas, as constelações, a estrada da realeza celestial criada em poeiras que cheiram a oiro e vaidade.


— Não sei — fechou os olhos para dessa forma melhor sentir o universo. — Gostava de acreditar, gostava que algo nos guiasse, seriamos anjos, seus guerreiros — riu.


— Com tudo o que existe no nosso redor, desde o vento, até esta mesma pedra, passando ali pela ponte… tem que existir um deus — Insistiu a ruiva.


— Talvez — voltou de novo a aprendiz de anjo, ainda antes de o ser. — Contudo, se existe, é um Deus cruel, podemos ter tudo isto, mas agora observa, vê os fogos que ceifam vidas, os monstros que se escondem nas sombras, as pessoas que são más…


No celeste norte mais uma estrela expirou o seu brilho, deixando a derradeira lágrima de fogo atrás de si… Se na cidade a noite é eterna, eterna é também a morte de anjos e estrelas, divisórias e escapatórias mentais de uma criança.


— Vá, nem tudo é mau — continuou Luísa. — Estamos aqui, não estamos?


No topo da colina estava um homem, o seu braço tinha uma rosa, e a alma ternura, encontrava-se aprisionado na vida, condenado a estar sempre presente, sorria perante a inocência das crianças, não lhes ouvia a voz, mas vislumbrava-lhes a aura.


Os corpos encontravam-se enxutos agora, era fácil secar a pele nos sonhos de uma noite de verão, Luísa sentou-se, pegou numa minúscula pedra que arremessou em direção ao rio, a ponte resplandecia sob a lua de sangue (estaria ela vermelha no início da noite?).


Beijou a face de Jéssica e sorriu no profundo cristalino dos seus olhos.


— Para que foi isso, minha parva? — Jéssica ria entre as palavras.


— Para te mostrar que nem tudo é mau, e que muito do que existe de mal não é culpa dos Deuses, mas sim do homem — Levantou-se a amazona de cabelos fogosos. — Vou fazer chichi.


— Vai ao rio.


— Não — uma cara de nojo falsificada. — Os peixes não têm que levar com isto — a lua escarlate ouvia atentamente. — Vou ali aqueles arbustos — apontou para cima, a besta rosnava inaudivelmente, no topo, o dono da rosa-branca notou uma alteração na aura, entrou em pânico.


Jéssica riu com a piada da sua amiga, a que esteve sempre presente, mesmo antes de nascer, acompanhou-a sempre, e neste instante, ali estavam elas, em roupa interior junto a um rio, mescladas com Gaia, protegidas por Deuses inexistentes.


— Vai lá, mas não demores.


O espaço temporal foram dois minutos, talvez três, até a ouvir de novo, as estrelas piscaram, um microssegundo de penumbra, (poderá o céu apagar-se, fechar-se, como as pálpebras de um deus?).


— Jéssica! Anda aqui, olha o que encontrei.


Jéssica calçou as botas sem as atacoar, e correu na direção da voz, no alto o portador da rosa-branca começava a correr para baixo, a lua verteu sangue, as estrelas dançaram, a avó pressentiu.


— Que foi, Luísa?


— Ali! — apontava para uma entrada negra, uma caverna para o coração da cidade, milhares de segredos ocultos. — Vamos explorar? Eu serei o bravo Indiana Jones, tu podes ser a Lara Croft!


— Não sei! — sentiu um arrepio na espinha, do interior vinha um odor bafio a pelo e decomposição, os seus ouvidos captaram um rugido, o olhar uma sombra na escuridão.


O céu piscou uma vez mais, um segundo desta vez, quando a penumbra terminou todas as estrelas iluminavam o planeta.


— Foge — desconhecida era a voz de uma velha que de todos é avó — Foge — gritou a noite.


De dento surgiu um urso, grandioso, colossal, uma bomba prestes a explodir, tinha ódio, tinha raiva, detinha medo, e esse medo, é o que os torna mais perigosos.


Ambas correram em direção ao rio, mais rápido que o vento, perseguidas por um gigante peludo que rosnava e espumava, a lua sangrenta contemplava (os deuses são cruéis).


Luísa caiu, Jéssica não se apercebeu, o dono da rosa-branca saltou em direção à animalesca fúria que se debatia sobre crianças, tardiamente.


A amazona de fogo não teve tempo de se levantar, sentiu as garras do bicho-do-mato rasgarem-lhe a coluna como se fosse papel, a viscosidade do sangue gorgolejou para fora, sendo o rio escarlate que se evapora da alma humana.


A dor foi inexistente, as mandíbulas brutais cravaram-se-lhe no pescoço, separando-lhe a cabeça do resto do corpo.


— Não olhes para trás — era a voz de novo, a velha. — Nada no rio, sobe o pilar.


Obedeceu, como não obedecer, ouviu rosnados atrás de si, batidas, baques, guinchos de dor, homem e fera.


— Luísa?


— Não pares — ordenava a velha.


Subiu o pilar o mais alto que conseguiu, daí tentou ver onde estava a amiga, conseguiu ver o urso cair, e um homem erguer-se, estaria nu? A lua amarela iluminava o mundo, as estrelas cintilavam, uma criou um risco prateado e brilhou mais que todas as outras.


O homem pegou num corpo e levou-o até ao rio, o corpo e a cabeça, sangrava o nu, corria sangue da borboleta amazona que transportava, viu-o entrar nas águas com ela, e serem levados. A purificação suprema.


— Luísa?


Uma raposa surgiu no rochedo de Gaia onde os casulos dormiam, a sua cor era fogo, como o cabelo da sua amiga.


— Luísa — gritou para os Deuses.


Chorou a raposa no alto do rochedo, Jéssica despenhou do pilar caindo nas águas diluvias, na sua axila nasceu uma pétala de rosa-branca.


— Lamento, minha querida — a avó (de quem?) do mundo, dos Deuses.


Acordou três dias depois na sua cama, eram quatro da manhã, a sua mente expurgara a noite, o urso, a voz da avó… e Luísa, uma proteção celestial para a sanidade mental.


A sua tutora estava junto a si, Jéssica, filha de ninguém, entregue aos seus cuidados por um estranho homem, o mesmo que a levou três noites antes de novo à residência.


A raposa, essa permaneceu eterna junto ao rio, a amazona que teve duas transmutações, a amiga que veio do próprio ventre, poderia ser real, imaginária, ninguém sabe, só a raposa, a avó, e o guardião das rosas-brancas.


* * *


Ela sorriu para o seu mentor, o perfume era doce, as rosas uma visão suprema.


— Não te preocupes Samuel, vamos.


Existem segredos nesta cidade, que pouco a pouco vão ganhando relevo, como se fosse a árvore-da-vida, todas as ramificações, desde a raiz, até ao mais imponente dos troncos.




AUTOR

Carlos Palmito

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