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CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 17 — 06/07/2022

Mais um conto de Carlos Palmito. Jéssica, a aprendiz de anjo saberá como agir no beco da aranha? O que o futuro lhe reserva? Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.


Leia, Reflita, Comente!

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PARA PROTEGER E SERVIR


por Carlos Palmito


Parte 2 — No beco da aranha


Arco de luz, faúlhas incandescentes à distância; na colina, a antiga fábrica de papel arde, segundos antes desta libertação amotinada do fogo, existiu um estrondo que ecoou por toda a cidade.

Os demónios correm pela cidade, o espelho que nos separa da sua moradia estilhaçou-se, urra o vento, berram os morcegos, gritam as sirenes do carro-patrulha número cinco, seis, um.

Jéssica encolhe-se no banco de pendura, a olhar para o seu mestre, o tutor numa hierarquia gerida pelos anos de serviço, este guia a viatura num chiar de pneus, borracha, entra na avenida principal cortando caminho aqueles que precisam de ser protegidos, mesmo quando o não sabem.


— Samuel?


— Pega no intercomunicador, pergunta à central o que se passa — abrandou um pouco a velocidade para deixar um camião cisterna passar. — Parece a porra de um ataque nuclear.


A criatura de olhos negros demorou uns segundos até conseguir perceber o que era o intercomunicador, a adrenalina corria por todo o seu corpo, em conjunto com ansiedade, no ar, milhares de pirilampos dançavam, metade dos céus estava encoberto por nuvens de fumo denso.


— Central, daqui a Jéssica, o que aconteceu na fábrica de papel? — notava-se medo na voz, causado pela inexperiência, pelos anos de tranquilidade numa cidade de aparências.


— Daqui central, o incêndio na fábrica de papel causou um desmoronamento — entoação irritada, como uma professora que notou que o seu aluno esqueceu-se de algo. — Já chegaram ao beco indicado?


— Estamos perto — Jéssica não conseguia tirar os olhos das colunas de fumo alaranjado por biliões de pirilampos em forma de faúlhas, faunos negros que pretendem reduzir o universo a cinzas. — Não precisam de nós na fábrica?


A voz do lado de lá da comunicação móvel calou-se por segundos, ouvindo-se apenas uma inspiração prolongada.


— Sigam para o beco, carro cinco, seis, um — um clique, a comunicação morreu, como as estrelas no firmamento, sufocadas pela fumarada, as futuras cinzas de uma réstia de civilização.


Ela pousou o seu comunicador, aparelho estranho que nos permite falar com quem não está. (Será que se o sintonizarmos corretamente conseguiremos falar com quem já se foi?) Notou os olhos avelã do seu orientador colados em si.


— Diz?


Samuel sorriu para o anjo que lhe colocaram no carro, abriu pisca para a direita e parou o carro, desligou as sirenas e fixou as luzes no tejadilho.


— Jéssica, sempre que comunicares com a central, deves identificar o número do carro, e não o nome do agente que segue nele — interrompeu o discurso por um momento, passou com os dedos pelo seu bigode curto em reflexão. — Quanto muito, identificas o número do polícia, mas nunca o nome.


Tornou-se rubra a face da rapariga, pós-adolescente, novata saída da academia, tamanha a sua vergonha, quase tão grande quanto as nuvens de fuligem que a pouco e pouco começavam a esconder a lua, as estrelas, os elementos cósmicos, quiçá para lhes esconder a perdição.


— Desculpa.


— Não faz mal — do lado de fora ouvia-se vento, trazia-lhes odor de madeira e metais em ebulição, cheiros de uma cidade a arder. — Erros acontecem, eu fiz muitos.


Abriu a porta, Jéssica fez o mesmo, e saíram, a cabine telefónica encontrava-se perto, o fogo longe, os demónios no coração de cada habitante da decadência; Jéssica continuava abismada com os céus, hoje as estrelas eram outras, sentia a adrenalina a corroer o mais íntimo do seu ser.


Em passos rápidos chegaram à cabine, o auscultador estava tombado, quem a usou saiu a correr e esqueceu-se de o pousar, Samuel olhou em volta à procura de indícios do que houvera sucedido no local.


— Vamos, minha aprendiz de anjo — apontou para a entrada do beco. — Segundo a central algo aconteceu ali.


Ela seguiu-o, finalmente desviou a atenção dos céus, ambos perscrutaram o ambiente envolvente, sujidade, lama, dejetos humanos enfiados numa viela, dois contentores do lixo e ainda assim o beco estava atolado de imundície, desperdícios arremessados fora por seres cuja única função é consumir oxigénio, parasitas de Gaia.


A pouco e pouco aproximaram-se do primeiro contentor, nada lhes chamava a atenção naquela lixeira, qualquer vestígio existente estava camuflado pela espurcícia, mesmo na luz das suas lanternas.


A primeira coisa que captou o olhar castanho de Samuel foi uma poça escarlate, sangue abandonado, desprovido de corpo, a segunda foram uns vestígios de vidro.


— Realmente aconteceu aqui qualquer coisa.


Por seu lado, Jéssica apontou a lanterna para o contentor, seguia agora lentamente, com cuidado para não pisar possíveis provas do que quer que ali tivesse ocorrido, e com isso as contaminar, num telhado baixo, ali perto, um gato miou, da outra ponta ouviu-se o rosnar de um dragão.


Quando estava apenas a três passos de distância viu uma mão, uma coruja piou, a dois passos, viu o braço, alguns morcegos esvoaçaram perto, refugiados de um fogo em papel, um passo apenas e já via o corpo na perfeição.


Olhos vidrados no vazio, roupa ensanguentada, nas zonas baixas tinha um pedaço de vidro cravado, de onde o gargalo se destacava, como se o corpo fosse uma garrafa de vinho das mais azedas colheitas siderais.


Sentiu algo acre subir-lhe do estômago em direção à boca, escancarou os olhos em pânico, ao miar do gato juntou-se o uivar de um cão, na parede junto ao contentor estava uma aranha a tecer a sua teia de mentiras e deturpações.


— Jéssica! — era preocupação o sentimento embutido na voz.


Ela não respondeu, sentia ácido na garganta, correu para o canto oposto do contentor, caixão de um homem que em tempos idos tinha sido uma aranha, encostou-se à parede e vomitou, expeliu o cachorro-quente, sentiu o quente e ardente do gomitado.


— Jéssica? — a dona dos cabelos negros manteve-se em silêncio, excetuando o som do líquido a sair do seu interior.


Samuel dirigiu-se ao contentor de onde a sua aprendiz fugiu, lá dentro encontrou a razão da revolta estomacal dela, se o cadáver ali ficasse uns dias, certamente que as moscas se deleitariam com aquele pequeno aracnídeo.


— Central, daqui agente com número de identificação quatro, quatro, três, seis, cinco, escuto?


— Diga agente?


— Encontrei um cadáver escondido num contentor de lixo no beco das almas perdidas — esperou por resposta do lado de lá, na ausência continuou. — Aguardo instruções.


— Certo, isole o local e aguarde a chegada da equipa técnica.


— Tenho autorização para procurar indícios nas imediações?


Existiu um breve silêncio, o suficiente para se ouvir o vento em corrida na viela, trazendo com ele odores de jardins ausentes.


— Tem — ouviu-se primeiro estática, depois o clique do desligar da chamada.


— Jéssica, estás bem? — gostava da aprendiz, a parceria ainda era curta, mas sentia empatia para com ela, a neta que nunca teve.


Ela ergueu a cabeça a custo, amargava-lhe a boca, sentia a face enrubescer e um arrepio na derme.


— Sim — recuperou fôlego, sentindo nesse respirar o nauseabundo odor da bílis. — Nunca tinha visto um morto, desculpa.


Samuel riu perante o embaraço da sua pupila, no beco uma sombra felina saltou de um telhado para o outro, no outro lado da realidade existiam convites em primeira fila para contemplarem a atuação dos anjos de azul.


— Duvido que algum dia vás esquecer a tua primeira vez.


Ela gargalhou, o velho policia era astuto, sabia como aliviar as situações, que palavras colocar e quando as usar.


— Fica aqui, Jéssica, isola o perímetro — apontou para o fundo do beco. — Vou ver se existe algo por aqui que possa ajudar a investigação.


— Mas…


— Não tenhas medo, o morto não morde — uma gargalhada descomunal, enquanto se afastava com a lanterna a vasculhar todos os recantos do beco.


Jéssica correu até ao carro, o quepe voou-lhe da cabeça e os seus longos cabelos esvoaçaram na cidade, sobre a cidade.


Sob a mesma metrópole caminhava um bombeiro em direção a um vulto com uma rosa-branca.


Retirou a fita para isolar o local e voltou para junto do caixão de lixo humano, apanhando o chapéu no caminho.


Na outra ponta, Samuel incidia a sua luz sobre um desenho na parede ainda a escorrer tinta, por sua vez, Jéssica olhava para o rosto do corpo, franziu o sobrolho, conhecia as feições.


— Samuel — gritou, esquecendo-se de ser noite, olvidando-se do fato de ser uma polícia, e não uma adolescente vinda de um qualquer bar em companhia dos seus alcoolizados amigos.


Ele mirava o desenho, hipnotizado, um ser draconiano em azul numa parede moribunda.


Jéssica terminou de isolar o local e começou a calcorrear caminho em passo rápido na direção do seu mentor, o céu continuava laranja, os pirilampos esvoaçavam, o dragão observava o policia de lado de trás da sua realidade alternativa, os gigantescos olhos de uma criança fitavam a cidade.


— Samuel, sei quem é o morto — ele estava a guardar uma lata de spray no casaco, ela extasiada. — Não sei se é boa ou má notícia, mas tenho quase a certeza.


Os olhos avelã do velho polícia em quase reforma miraram-na em curiosidade.


— Lembras da tentativa de violação no jardim?


Levantou-se, ocultando o vulto no seu casaco.


— Sim.


— É ele! O gajo que está ali esquartejado é ele.


— Ele? — No fundo, sabia que ela o tinha visto guardar a lata.


— Sim, o tipo é igualzinho ao retrato robot, o violador.


— Tens a certeza?


— Pela alma do meu tio!


Voltaram para junto do contentor, ele sentia o olhar curioso dela espetado no seu casaco.


Na entrada do beco começaram a surgir os elementos da polícia técnica, um deles apressou-se para o dueto de mestre e aprendiz.


— Onde está o cadáver?


Samuel não respondeu, indicou o contentor que estava ladeado de fita amarela.


— Encontraram alguma coisa mais?


Jéssica, a aprendiz de anjo olhou para o seu instrutor, no céu o fumo começava a desaparecer, as estrelas a nascerem, pontos cintilantes no aveludado edredom de um Deus.


— Não — respondeu ela, na falta de palavras do seu tutor.


— Certo. Penso que já não sejam mais necessários aqui, agora eu e eles tomamos conta da ocorrência.


Ambos os patrulhas concordaram, começaram a caminhar em direção à sua carruagem para proteger e servir.


— Esperem! — estacaram, tornaram-se estátuas. — Aquela poça de vomitado ali?


Jéssica esboçou um sorriso tímido.


— Fui eu. Nunca tinha visto um cadáver tão perto.


O senhor policia técnica soltou uma gargalhada por detrás dos seus dentes amarelados.


— Podem ir então.


Entraram no carro, e iniciaram a marcha na avenida, em andamento lento.


— Diz, Jéssica — aguardou um segundo pela voz que não surgiu. — Sem medos, pergunta o que quiseres, vi o teu olhar atento de raposa.


— Porque ocultaste a lata?


Ele mirou-a com um observar desinibido, os faróis da viatura cinco, seis, um embateram num dragão que rosnava aos deuses notívagos.


— Sabes, pequena, existem segredos nesta metrópole longe do sol e do trópico pelos quais vale a pena arriscar a pele.




AUTOR

Carlos Palmito

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