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CONTOS DE UM FUTURO DISTANTE Nº 3 — 01/03/2022

Atualizado: 2 de mar. de 2022

Alessandra Valle conta um caso de um crime por ciúmes. Envolva-se nessa trama e descubra o seu final. Diretamente de Portugal, Carlos Palmito nos brinda com um conto escrito em 2005 e foi re-escrito agora, especialmente para o nosso blog. O conto de Carlos será publicado em 3 partes. E eu, Luiz Primati, trago um conto de 2018, publicado inicialmente no Facebook em partes e depois entrou para o livro: "Velhas Histórias Urbanas" que foi baseado num fato e será publicado em 2 partes.


Esse caderno tem a intenção de divertir os nossos leitores que, sempre acabam tirando algum ensinamento para suas vidas.


Leia, Reflita, Comente!


Imagem: http://professoralucianekawa.blogspot.com/2013/12/o-luminol.html


CIÚMES


por Alessandra Valle


— O casal vivia bem — respondeu o irmão da desaparecida ao ser interrogado por mim e continuou:


— Minha irmã estava feliz, acabara de passar no concurso, fora contratada como gari — falou com a voz embargada pelo choro.


Havia três dias que a irmã/ mãe / esposa / gari estava desaparecida, deixando familiares sem qualquer notícia.


Estavam diante da polícia apenas os irmãos da desaparecida para comunicar o fato.


— E onde está o marido? — perguntei.


— Vivendo normalmente, apenas afirmando para todos que ela foi embora viver na farra — afirmou um dos irmãos.


Aparentemente, a moça não tinha motivos para deixar o lar.


Segundo os irmãos que estiveram em seu lar, não deram falta de nenhum de seus pertences pessoais.


Essa atitude é incompatível com quem deixa o lar voluntariamente.


— Leve uma intimação para o marido vir depor e entregue em mãos — solicitei ao irmão.


No dia agendado, o marido não compareceu à Delegacia.


Fiz contato com os irmãos que afirmaram que logo cedo, naquele dia, o cunhado passara na casa da sogra, deixou os três filhos e disse que iria trabalhar, mas, na verdade, portava uma mala grande e fugiu para destino ignorado.


Fizemos a primeira visita técnica à casa do casal levando conosco a perícia técnico- científica.


Um exame pericial fora realizado utilizando o reagente Luminol capaz de detectar sangue oculto em cenas de crime contra a vida.


Apesar da aparência de limpos, no colchão do casal e no tanque da lavanderia a quimiluminescência se apresentou, constatando a presença de sangue.


Procuramos na casa o que poderia ter servido como arma para o possível homicídio da moça, mas nada encontramos.


Quando estávamos para deixar o imóvel, um vizinho se aproximou e nos contou que dias antes emprestara ao marido da desaparecida uma enxada.


Solicitamos que nos trouxesse a ferramenta e a perícia aplicou Luminol tendo reagido amplamente.


Tínhamos provas periciais e mais a fuga do possível autor para representar ao Ministério Público pela prisão preventiva do marido.


Os irmãos estavam revoltados. Jamais imaginariam o motivo pelo qual o cunhado matara a mãe de seus sobrinhos.


Era uma esposa exemplar, cuidava dos filhos, do lar e do marido.


Mas, de um tempo para cá fora aprovada no concurso público para gari e a nova função incomodou o marido que passou a sentir ciúmes da mulher.


A prisão preventiva foi concedida pela justiça, mas o autor do feminicídio e da ocultação do cadáver estava foragido.


Enquanto isso, agentes policiais da "Desaparecidos" fizeram buscas por covas escondidas nos matagais próximos da residência da desaparecida, sem êxito.


Outras vezes, solicitamos buscas aos bombeiros que treinam cães para farejarem odores da decomposição com segurança, também sem êxito.


A área de matagal é extensa e não tínhamos a certeza do local da ocultação do cadáver.


Buscas pelo paradeiro do homicida foram realizadas e seus familiares acabaram por denunciá-lo.


O foragido estava em outro Estado, local de difícil acesso.


Uma equipe de policiais se deslocou de viatura até uma cidade do interior nordestino e logrou êxito em prendê-lo.


Ele seria deixado na delegacia mais próxima, entretanto, confessou o crime bárbaro e disse que mostraria o local da ocultação.


Então, o criminoso retornou com os policiais e indicou o local onde havia ocultado o corpo de sua esposa, mãe de seus filhos e acabado de vez com sua família.


A desaparecida fora localizada, mas devido o longo período entre a data do desaparecimento até a data do encontro da vítima, seu corpo estava em adiantado estado de putrefação e só pode ser reconhecido por perícia, através de exame antropológico.


— Ela só queria saber dos colegas de trabalho — disse o marido, autor do feminicídio, antes de encerrar seu depoimento na "Desaparecidos".


E o plantão continua.



DE ANJOS E FADAS


por Carlos Palmito


CAPITULO 1 — UMA MOSCA NO JARDIM

Meia-noite em ponto, Amy levantou-se do canto onde até ao momento tinha estado sentada; sozinha, numa solidão maior que todas as outras vezes.


Dirigiu-se ao balcão, pagou o que consumiu, pediu de volta o seu casaco; um daqueles longos, de cor escura, que vão até aos joelhos, para a proteger do frio que estava no exterior.


Saiu, abriu a porta, a campainha tocou… toca sempre que entram e saem clientes, e começou a caminhar, deixando para trás o ambiente de tabaco e de álcool, as risadas e gritos noturnos ocultos entre quatro paredes, escondidos num bar…


A noite estava gelada, Amy aconchegou-se no seu casaco… uma lua cheia, em conjunto com os candeeiros, iluminava as ruas, embora palidamente, pois o nevoeiro semicerrado que encobria a cidade, tentava omitir-lhe o brilho.


Ela começou a percorrer o caminho que todos os dias fazia, mais ou menos à mesma hora, em direção a casa. Hoje tinha pressa, uma estranha sensação percorria-a, não sabia bem porquê, mas algo não estava bem, precisava da proteção do seu lar, e devido a isso aumentou as passadas.


Quase que voava, rua após rua, desertas na sua plenitude à exceção de um ou outro táxi, mas ela repudiava-os, sempre os abominou, mesmo sem conseguir justificar o porquê… não se sentia segura dentro deles.


Virou numa esquina, e adentrou pelo jardim, o caminho mais rápido para a sua casa… entrou, passando entre árvores e flores… sentindo o aroma noturno de todos eles… inesperadamente, um som… passos: “estranho, nunca ninguém passa aqui a estas horas da noite!”.


Aumentou ainda mais o seu andamento, ouvindo os passos atrás aumentarem também a sua intensidade, sentiu-se entrar em pânico, afinal a estranha sensação tinha a sua razão de ser…

Sem coragem sequer de olhar para trás, ampliou ainda mais a sua velocidade, abriu-se o casaco que agora ondulava ao vento enquanto começou a correr…


O medo apoderou-se dela, quem seria a pessoa, que quereria, porque viria atrás dela? Na sua mente passaram excertos de imagens rodopiantes e estonteantes que todos os dias ela lia em jornais, ou via na Televisão, “Jovem assassinada na noite lisboeta!”; “Mais uma mulher foi vítima de violação durante a noite!”; “Assaltantes roubaram, violaram, humilharam e posteriormente mataram uma estudante universitária no seu percurso noturno para casa!”.


Tudo imagens que lhe atravessavam a mente, enquanto corria… os passos de quem quer que viesse atrás amplificaram também para corrida, ela ouvia-os nitidamente, “Irei eu aparecer na primeira página do jornal, amanhã?”.


Virou na segunda rua do jardim, viu uma pessoa ao fundo e dirigiu-se para lá… um homem, a sua salvação… quem quer que viesse atrás não teria coragem de fazer fosse o que fosse se a visse com outro alguém… correu para lá… para a salvação… a lua no céu começou a ficar encoberta, a neblina noturna principiou a metamorfosear-se em pequenas nuvens, que já lançavam uma chuva muito miudinha, quase impercetível, para a terra… a acompanhá-la, um vento gelado, mas Amy não sentia nem um, nem o outro, apenas sentia medo… pânico quase descontrolado.


Chegou rápido perto da figura que tinha visto ao longe…


— Desculpe, desculpe, ajude-me, vem alguém a perseguir-me, ajude-me por favor!


O homem deu mais um bafo no seu cigarro, olhou para trás de Amy, para quem vinha atrás dela, fosse quem fosse, já não corria, apenas caminhava vagarosamente, com os olhos colocados nela… o salvador observou-a, sorriu… um sorriso que fez o sangue nas veias de Amy gelarem… era um sorriso frio… um sorriso falso… o sorriso de um predador antes de apanhar a sua vítima.


“Não…” pensou Amy, não podia ser, só podia mesmo ser o pânico a falar por ela, não podia ser… o salvador não podia ser o predador…


Uma briga de gatos fez-se ouvir ao longe… o vento começou a uivar entre as árvores e a chuva aumentou a sua intensidade… Amy tentou sair de onde estava, procurou dar a volta ao homem, mas foi agarrada. Um punho fechou fortemente em volta do seu pulso… não podia ser… a salvação tinha mudado de nome… a salvação era agora morte… as imagens dos jornais e TV aumentaram a potência na sua mente… “Deus… que te fiz eu para merecer este castigo?”.


O segundo homem chegou, e pela primeira vez ela ouviu-lhe a voz rouca de tabaco.


— Corre, corre pequena mosca, corre… corre em direção à teia que a aranha preparou para ti.


Amy observou, viu os olhos negros do homem, viu a língua dele passar nos lábios, num gesto que a deixou nauseada…


— Temos uma surpresa para ti. Diz-me, será a bem ou será a mal?


Amy fez força, procurou livrar-se do punho do primeiro homem, contudo ele apertou ainda com mais força, quase esmagando os frágeis ossos do pulso de Amy… puxou-a violentamente para si, e nesse ato ela sentiu-lhe o hálito quente e nauseabundo que vinha da sua boca.


— Parece que aqui a cadela precisa levar um ensinamento para começar a respeitar os seus donos — disse numa voz ainda mais rouca que a do senhor-teia-de-aranha, mais podre!


Ele atirou-a para o outro… nesse momento ela sentiu-se como uma boneca de trapos, uma marioneta nas mãos de uma criança que facilmente é jogada de um lado para o outro… tentou fugir uma vez mais… ainda iniciou o passo, mas foi agarrada pelo casaco; o homem era forte… o senhor-teia-de-aranha era ainda mais forte que o senhor-podridão.


Este arremessou-a para o chão, rasgando-lhe o casaco no ato… ficando com pedaços dele, na mão, como se um troféu fosse.


— Olha Pedro — afinal o senhor-podridão tinha nome. — Um escalpe!


Pedro riu, um riso que fez com que o sangue nas veias dela congelasse… era a segunda vez nessa noite.


O senhor-teia-de-aranha olhou para Amy… tudo o que ela lá viu, foi ódio, a crueldade na sua mais animalesca existência.


— Tentaste fugir? De nós? Mas que merda te levou a pensar que conseguias, cadela?


Pontapeou-a, um pontapé direto ao abdómen; a dor foi dilacerante, intensa… baixou-se então o senhor-teia-de-aranha e contemplou-a, lambendo de novo os lábios (nojo e repulsa) ergueu-a pelos cabelos… a atenção na dor do abdómen foi desviada para essa…


— Pedro, vem, vamos mais para ali, este local é muito à vista.


Amy foi arrastada pelos cabelos, tentou gritar, mas o pânico era demasiado… nenhum som foi emitido pelas cordas vocais.


Ao entrarem mais para dentro da escuridão entre as árvores e flores, ela viu pela primeira vez uma peça na mão do senhor-teia-de-aranha… um objeto luminoso, viu a cintilação nos olhos dele. — Então pequena mosca, diz… a bem, ou a mal? — enquanto a lâmina de uma faca arrancava-lhe botão a botão da sua camisa branca, abrindo-a dessa forma.


Não conseguiu responder, o senhor-teia-de-aranha desferiu-lhe um golpe pleno na sua face, um golpe de mão fechada, não com a lâmina, mas sim com o punho… a dor foi ainda mais lancinante, ela sentiu o sabor metálico do sangue na sua boca, nos seus lábios…


Arregalou os olhos, não queria acreditar… Pedro segurou-a, enquanto o primeiro continuava a passear com a faca, faltava apenas um último botão, que foi derrubado da sua casa e deitado ao chão com o passar do gume da faca.


— Quietinha, nem um som, pequena mosca.


“Mas, porque raios me chamam pequena mosca?” — pensou, e sentiu então a lâmina fria a passear na sua pele nua em direção ao peito, ao sutiã… sentiu a faca a cortá-lo como se fosse manteiga, deixando os seus seios rosados a descoberto.


Tentou gritar, conseguiu, desta vez conseguiu, um grito de socorro desesperado saiu-lhe da boca, mas o único auxílio que teve foi o punho de Pedro no seu rosto, mais pesado ainda que anteriormente… a dor desta vez foi pungente, nenhuma das prévias chegavam perto desta, quase sentindo o maxilar a ser estilhaçado… Pedro ria enquanto o senhor-teia-de-aranha passeava a lâmina pelos seios de Amy…


O metal tocou-lhe suavemente no mamilo, frio em quente, a lua encontrava-se agora totalmente escondida (vergonha do crime noturno, quem sabe) a chuva aumentou (serão os anjos a chorar?) e o vento… esse agora corria (os demónios da floresta andam à solta).

A faca desceu, o percurso que tinha feito até aos seios de Amy, foi agora executado na ordem inversa, até às suas calças.


— Que tesouros estão escondidos aqui?


Amy não conseguia falar, o último murro tinha sido potente, neste momento apenas chorava de terror, as lágrimas percorriam-lhe o rosto, e eram dissipadas pelas gotas de chuva.

Sentiu o botão das calças a ser assassinado pela ponta da lâmina… sentiu os outros três a morrerem também… fechou os olhos, não podia mais, não podia assistir… tentou alhear-se na sua mente, fugir dali na única escapatória possível, o pensamento…


Sentiu ainda as calças a serem violentamente puxadas para baixo, quase que arrancadas (boneca de trapos) e sentiu a ponta da lâmina a percorrer a sua perna… sentiu um golpe lá, e o quente do sangue a ser misturado com o frio da chuva… depois uma língua a chupar o seu sangue, a navegar na sua perna até bem perto da virilha… a sua roupa interior a ser arrancada… puxada com mais atrocidade ainda que as calças.


— Agora, começa o jogo… da pequena mosca e duas aranhas…


Pedro soltou uma risada mais alta, mais fria ainda… sentiu as mãos do senhor-teia-de-aranha, e sentiu-se quase a vomitar nesse instante… a desmaiar com o medo…


Então as mãos de Pedro afrouxaram, escutou um grito de surpresa do senhor-teia-de-aranha, ouviu um baque como se alguém tivesse dado uma bastonada num muro… pela primeira vez estava liberta.


Deixou-se cair na lama do chão, na infâmia que a noite tinha criado, no lodo que as lágrimas dos anjos houveram concebido…


No momento, a coragem para abrir os olhos era inexistente… percecionou o som de alguém a correr, quatro pés, não dois, mas quatro, e novamente o som do baque, os gritos do senhor-teia-de-aranha, ouviu o que parecia ser uma briga, mas não tinha coragem de se mexer, de abrir os olhos.


A chuva acalmou, o vento abrandou… ao longe, nova altercação de gatos… aqui, alguma batalha existiu… percebeu o toque de umas mãos no seu corpo, “não, voltaram, foi a minha imaginação, a briga foi apenas um devaneio meu” — e sentiu-se a ser erguida por dois braços, não como tinha sido até então, e sim de forma ternurenta, contudo, a coragem de abrir os olhos, não existia, Amy temia o pior…


Algo lhe cobriu o corpo nu… ouviu uma voz… não gelada como as anteriores.


— Agora estás bem… — as lágrimas voltaram mais intensamente, afinal sempre existia salvação na noite.


— Onde moras? Precisas de hospital? Precisas de fazer queixa? Onde te posso levar? Levo-te ao colo — Amy sentiu vontade de abraçar este ser, fosse quem fosse, ainda com olhos fechados, envolveu o pescoço dele, abraçou-o.


— Leva-me, leva-me para casa… amanha faço o resto, agora preciso descansar, leva-me para casa por favor.


O estranho começou a mover-se, — Sei onde vives, acho que sei… — caminhou com ela no seu colo pela noite.


A lua voltou (sempre tinha sido por vergonha que se houvera escondido) o vento, esse parou de vez (os demónios esta noite morreram) Amy adormeceu no colo do seu salvador… do seu anjo.


Continua...




FANTASMAS NO APARTAMENTO


por Luiz Primati

CAPITULO 1 — ASSALTANDO A GELADEIRA


Aqui no Brasil, ouvimos muito sobre a imigração. Terra abençoada, sempre acolhemos pessoas de todas as nações. Não olhamos o seu passado e aceitamos todos como irmãos. Por isso o Brasil é tão querido no mundo.


Daniel era da quarta geração de japoneses no Brasil. Sua denominação é Yonsei. Primeiro foram os nisseis, depois sanseis, isseis e agora yonseis. Eu sempre dizia a um amigo de origem japonesa, que ele era dos “não sei”, me perdoem a brincadeira.


Após morar por 22 anos no bairro da Liberdade, em São Paulo, Daniel chegou à conclusão de que era hora de tentar algo no país de seu tataravô, o Japão. Admiro esse país. Após entrar numa guerra que não lhe pertencia e ser punido pelos americanos em Hiroshima e Nagasaki, o mundo sentenciou o Japão às trevas. Conhecendo Phoenix, fica fácil explicar que, no país dos olhinhos puxados, a coisa era diferente.


Após a Segunda Guerra Mundial, muitos fugiram do Japão. Não foi diferente com a família de Daniel. Nascido na terra da oportunidade, Brasil, cidade de São Paulo, pensou que ali poderia ter um futuro digno. Afinal, em seu sangue corria a fibra, a força do povo japonês, castigado por muitas catástrofes. Contudo, não combinaram com o Brasil que eles poderiam ter alguma facilidade por aqui, por já terem sofrido anteriormente. Daniel até tentou ter um futuro digno e se decepcionou. A sua jornada diária de 14 horas não lhe rendia o suficiente para uma vida digna.


A fofoca corria solta entre os trabalhadores. Na Liberdade, entre os descendentes japoneses, as conversas era sobre fazer a vida no Japão, numa fábrica. Lá se trabalharia o mesmo que em São Paulo, no entanto, após alguns anos, a grana acumulada daria para viver uma vida sossegada. Isso contava os que tinham irmãos experimentando a vida no Japão. Daniel se interessou.


Foi na véspera de um feriado que Daniel comunicou a sua intenção de ir para qualquer cidade do Japão. Muitos relatos eram contados durante o almoço lá nos restaurantes da Liberdade. Questionou os pais se seria possível ir para lá. Adriano e Cláudia, pais de Daniel confirmaram. Mas teria que guardar o dinheiro da passagem. O visto estaria garantido pela descendência. O emprego poderia ser arrumado por parentes. As oportunidades eram boas. Daniel se animou.


Depois de 8 meses guardando o salário suado, Daniel estava pronto para tentar o futuro na terra do sol. Marcou com a namorada, Ângela, num sushi, é claro, e comunicou estar pronto. Ela chorou. Pensou que ele não falava sério e que nunca juntaria o suficiente. Ela se enganou. Ele prometeu voltar assim que acumulasse o bastante.


O Aeroporto de Guarulhos era pequeno para a família de Daniel. Eles apoiavam sua ida ao Japão. A mãe chorava, a namorada também. O pai torcia que ele retornasse logo. Daniel conseguia conter os sentimentos. Não podia fraquejar agora. Depois de várias choradeiras e soluços, o avião chegou e aguardou Daniel subir embarcar. A partida foi rápida. Em menos de 5 minutos o avião estava inalcançável. Daniel partiu feliz, com o coração apertado e a promessa de retorno. Quem ficou chorava de saudade, mesmo antes do sentimento tomar conta do peito.


Na "Terra do Sol Nascente", Daniel se hospedou no apartamento de um amigo. Era bem apertado. Ficaria até conseguir o segundo ou terceiro salário. Depois poderia se mudar. Foi paciente e o dia chegou. Alugou seu próprio apartamento ao lado e agradeceu sem fim.


Trabalhava duro na fábrica de autopeças em Shizuoka. Sua rotina era caótica. Tudo começava às 05:40h. Tomava seu banho, alimentava seus animais de estimação, 2 doninhas. Dava-lhes ração e água. Eram animais calmos e domésticos. Depois preparava sua mochila com a refeição. Café da manhã, almoço e lanche da tarde. Tudo produto industrializado. Lá pelas 6:00h, sentava no sofá e olhava as suas redes sociais. Verificava o Facebook, Instagram e e-mails. Mas quando chegasse em casa, por volta das 21:00h, iria queria comer o seu arroz preferido. Para isso preparava a panela às 6:00h da manhã, definindo que a mesma deveria começar o cozimento do arroz às 19:00h. Assim poderia comer seu arroz quentinho às 21:40h. Quando o relógio marcava 6:15h, Daniel dava às suas doninhas, uma espécie de Nutella numa vasilha. Era a hora que ele aproveitava para sair. Caminhava por cerca de 5 minutos até o ponto de ônibus.


A caminhada em direção à condução que levava Daniel para a fábrica parecia ser infinita. O dia ainda nem clareara. Em sua cabeça cantarolava a música da dona aranha: “A dona aranha subiu pela parede, veio o vento forte e a derrubou…”. É a maneira que achava de se sentir ligado ao Brasil. Chegando à esquina, se o semáforo fechava, Daniel desviava seu caminho por baixo do cruzamento, por uma passagem subterrânea. Não queria arriscar perder a hora. Às 6:20h chegava o ônibus e levaria uma hora até a fábrica. O retorno era as 20:30h. Quando chegava em casa, lá pelas 21:40h, seu arroz estaria pronto. A vida era dura.


Depois de 2 meses que Daniel estava morando no novo apartamento, ele e as doninhas, começou a notar que algumas comidas sumiam. No início pensou que a mente lhe pregava peças. A jornada de 13 horas diárias poderia estar fazendo sua mente, cansada, imaginar coisas. Mas em determinada manhã, resolveu fotografar as comidas e checar na volta. Nada de anormal quando voltou. Estava todas no mesmo lugar. Resolveu esquecer. Mais 6 meses se passaram e Daniel ainda se incomodava com os sumiços de alguns alimentos. Fotografou novamente. Ao conferir durante a noite, viu que realmente alimentos sumiram. Seriam as doninhas?


Daniel ficou intrigado com seus animais de estimação. Teriam capacidade para escalarem as prateleiras altas e surrupiarem o alimento? Precisava de uma prova antes de punir seus animais. Para isso preparou uma câmera focalizando os alimentos que sempre sumiam. Deixou gravando e foi trabalhar. Os dias eram cansativos. Quando chegou à noite e foi conferir a gravação, não tinha nada. A bateria acabou logo. Precisava deixar a câmera ligada na energia para poder filmar pelas 14 horas. Faria isso em breve comprando uma extensão que pudesse ligar a câmera na energia o dia todo.


Mais alguns dias se passaram e Daniel não teve tempo de ir comprar a extensão e as comidas continuavam sumindo. Uma noite notou a presença de um prato sujo de comida na pia. Como aquele prato tinha ido parar lá? Será que tinha esquecido de lavar pela manhã? Achava improvável. No entanto, as doninhas não utilizavam pratos para comer. Deveria ter sido ele mesmo. O cansaço e a vida atribulada deixava as pessoas confusas. Sábado iria comprar a extensão, prometeu e cumpriu. No domingo à noite deixou tudo arrumado. Posicionou a câmera focando nos alimentos. Ligou a extensão na tomada e deixou gravando. Dessa vez pegaria as doninhas — pensou.


Logo que chegou de noite não lembrou de ver a gravação. Mesmo que lembrasse, chegava bem cansado. Ainda tinha que cozinhar uma mistura para comer com seu arroz, pontualmente pronto as 21:40h pela panela mágica. No dia seguinte olhou as gravações.


Tinha apenas 15 minutos antes de sair e pegar o ônibus. Daniel correu a gravação para ver o momento em que as doninhas pegavam seus alimentos. Quando o relógio marcava 10:20h, a imagem ficou borrada. Daniel achou estranho. Poderia ser uma queda de energia. Voltou a gravação e passou devagar. Era um vulto. Uma pessoa? A imagem parecia focalizar olhos. Algo passou diante da câmera. Logo depois que a imagem se restabelecia, uma maça havia sumido. O que seria aquele vulto? Seria a doninha passando em frente à câmera? Só que elas estavam longe. A câmera deveria pegar a doninha toda. Estranho registrar somente um vulto. Precisava ajustar a câmera. Faria isso assim que tivesse tempo.


O sumiço dos alimentos intrigava Daniel. Porém, não se importava muito com isso, visto que, se as doninhas pegavam para comer é porque tinham fome. Final de semana chegou e Daniel fez um passeio num campo de girassóis. Lá as pessoas iam para fotografar, filmar, relaxar. Daniel fez o mesmo. Filmou, fotografou, se embrenhou entre os girassóis. Havia chovido e o barro era cruel. Grudava na sola de seu tênis sem piedade. Não importava, depois passaria no mercado e compraria algum produto para limpá-los.


No Japão se encontra de tudo. Quando falo tudo, é tudo mesmo. Não existe o que não se possa comprar nos supermercados. Desde alimentos até televisores 4k. Daniel queria algo específico que resolvesse o problema do seu tênis. Achou uma espécie de saco que resistia à máquina de lavar. O tênis era colocado no saco, lacrado e depois era só jogar na máquina e esperar. No entanto, primeiro deveria retirar o barro. Lavou o tênis no tanque retirando o excesso de barro. Também retirou os cadarços. Como sua máquina era daquelas que lava e seca, se lavasse os cadarços, com certeza, eles encolheriam ao secar. Experiência própria. Lavou os cadarços separadamente, na mão. Os secou na sombra. O tênis foi no saco e a experiência deu certo. Daniel aprendeu mais um truque.


Depois que colocou o tênis para lavar, guardou as compras de mercado. Comprou bananas, cookies, chocolates poloneses com 85% de cacau, uma máquina para selar embalagens, ovos, frango, arroz, shoyo, cebolas, legumes, salgadinhos, doces. Já tinha o suficiente para a semana. Agora era só guardar tudo e se preparar para o dia seguinte, trabalho pesado na fábrica.


Enquanto guardava os mantimentos no armário, notou a falta de algumas latas de conservas. Achou estranho. Se as doninhas comiam seus alimentos, latas de conservas elas não sabiam abrir, isso ele tinha certeza. Ficou muito assustado com tudo aquilo. Verificou imediatamente seu apartamento. Checou as trancas das portas e janelas. Investigou cada cômodo e tudo parecia em ordem. Iria arrumar mais câmeras para filmar outros cômodos e pegar o intruso.


A rotina do dia seguinte foi a mesma de sempre. Na fábrica pediu para um amigo emprestar 2 câmeras portáteis. Chegando em casa iria posicioná-las para desvendar todo aquele mistério. Poderia estar dormindo com o inimigo. Pior ainda, seu apartamento poderia ser mal-assombrado e estaria recebendo visitas do além. Só de pensar nessa possibilidade Daniel já sentia os pelos do corpo se arrepiando. Uma vontade de sumir dali e voltar para os braços da mamãe invadiu seus pensamentos. Seria fácil se ainda morasse a uma quadra de distância. De onde se encontrava, até a sua mãe, eram apenas 32 horas de viagem e milhares de quilômetros. Mais fácil contatá-la via celular. Duraria menos de 1 minuto. Mas era bobagem. Nada daquilo deveria ser um mistério. Alguma coisa tosca que ele não estava enxergando.


Uma das câmeras ficou na cozinha, focalizando a geladeira. A outra no quarto de Daniel e a terceira filmava a sala e o cômodo onde estavam as doninhas que era no corredor entre o quarto e sala. Com isso o mistério seria resolvido. Deixou tudo posicionado e foi dormir. No dia seguinte, logo as 5:40h foi desperto pelo seu iPhone e repetiu a rotina diária: banho, café, arrumar mochila, redes sociais, alimentar as doninhas, sair.

No trabalho, sem novidades. Chegou em casa, tomou banho, alimentou as doninhas e depois jantou. Agora era a hora de assistir os vídeos. Pegou as câmeras, conectou-as no computador e passou a assistir às filmagens. De início nada de mais. Suas doninhas andando de um lado para o outro, os raios do sol iluminando o apartamento e coisas assim. Resolver avançar lá pelo horário das 10:30h. Era por aí que a outra filmagem pegou um vulto. Quando passou pelas 10:15h, surgiu uma pessoa na cozinha. Era uma mulher. O coração de Daniel disparou. Parecia que teria um infarto tamanha era a adrenalina produzida por aquela cena. Ela abriu a geladeira, pegou uma caixa de suco e tomou na caixa mesmo, sem colocar num copo. Daniel sentiu ânsia em saber que acabara de tomar um copo do mesmo suco que a mulher bebera. Tinha a saliva dela dentro do seu estômago. A vontade de vomitar voltou com tudo e ele segurou. Depois a mulher comeu algumas coisas que estavam na geladeira, com a mão mesmo, limpou a boca no pano de prato e sumiu.


Precisava ver as outras câmeras. De onde surgira? Para onde fora? Avançou as imagens nas outras filmagens para o horário de 10:15h e nada da mulher. Da mesma forma que surgira, se fora. Isso o intrigou ainda mais. Seria ela um fantasma? Alguém que viveu e morreu no apartamento, por isso não conseguia se desconectar dali? Poderia ela estar no apartamento ainda?


Com muitas questões sem resposta e um coração batendo forte, pegou uma faca na cozinha e passou a olhar os cômodos. Olhou todo o seu quarto, a sala, o corredor, cozinha e nada da mulher. A noite foi longa e Daniel quase não dormiu de tanto medo. Na manhã seguinte armou as câmeras novamente e se foi. Talvez ela não surgisse mais. Poderia ter sido esporádica a sua visita.


Continua...



CHARGE

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NOSSOS COLUNISTAS


Carlos Palmito, Alessandra Valle e Luiz Primati.

 
 
 

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