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CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 25 — 16/11/2022

O conto de Carlos Palmito continua...


"Em fuga da fauna mitológica, os três mosqueteiros são guiados para o rio, lá espera-os uma amiga que há muito desapareceu e que os guia em direção a um imortal. O que significam as palavras da avó? Qual o enigma por trás delas? Quantas pétalas tem um paladino e quantas realidades existem? Será tudo real ou apenas alucinação?".


Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.

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AUTOR CARLOS PALMITO


Nasceu na cidade de Évora, Portugal. Aprendeu a ler e escrever antes de iniciar a escola, por força e dedicação da sua mãe. Trabalha na área de TI, apesar da sua verdadeira paixão se encontrar na escrita, sendo nela que despende grande parte da sua energia. O primeiro livro que leu, e um dos que mais o marcou foi “O Conde de Monte Cristo”, teria sete a oito anos na altura, mas desenganem-se se pensam que ele se fixou só por romances, pois ele lia de tudo, desde banda desenhada a livros de geografia. Durante o seu percurso na escola, foi convidado a ingressar no jornal escolar, odiou esta parte, aqui descobriu que adora escrever ficção, mas odeia escrever sobre realidades. Tem como autores favoritos Alexandre Dumas, Júlio Verne, e o que considera seu ídolo e inspiração, Stephen King. Considera-se um apaixonado por letras, filosofia, psicologia e arte em geral, este autor desde cedo que começou a rabiscar contos e poesia. A sua criação hoje em dia rasa a loucura e a lucidez, a harmonia e o caos. Autor no blog https://allinone.blogs.sapo.pt


OS TRÊS MOSQUETEIROS


Descrição, um processo relativo de contar detalhes, pormenores e pontos de vista, aparências e verdades até à extenuante precisão.


A lua está sempre lá, estava sempre naquele local, acima da cidade e da desonra da natureza, debaixo dela existiam túneis infindáveis a ligar todos os pontos, todos os elos de uma corrente enferrujada na decadência de uma metrópole em agonia.


Três adolescentes corriam desenfreados, eram presas da mitologia, na colina rugiam monstros, na avenida existiam carroças vermelhas com luzes azuis a bramar urgência, velozes na incoerência da noite.


— Sigam para o rio — a avó continuava a falar, a dar indicações, direções, para trás ficou a aranha e o dragão. — Encontrem a raposa de fogo, encontrem o fantasma, eles precisam de vocês, e vocês deles!


Os três R’s, criadores de dragões e rios, adolescentes em puberdade, fugiam de demónios, de doces amargos e pirilampos, o ar estava empestado de fumo, a deusa da lua desaparecia por entre rolos de fuligem negra.


— O que se passa aqui Rafael? — indagava Ricardo com o cabelo ruivo a dançar ao vento, arrastado e acariciado por Éolos.


— Temos que ir, corram, temos que ir — não abrandou a passada, o filho da rua sabia quando tinha que correr, quando necessitava dos músculos inferiores na potência máxima, qual alazão em fuga de uma floresta incendiada.


— Isto foram os papeis, pá, estamos a tripar — Rui tinha lágrimas nos olhos causadas pelo frio e fúria. — Eu sabia, tomar porcarias que mexam diretamente nos neurónios dá sempre asneira.


Um trovão ribombou, o segundo, o trio abrandou a passada, parou mesmo, na berma da estrada, o passeio para as ovelhas que deambulam nas pastagens de lobos, e olharam para trás, para a colina e a fábrica de papel, para o céu laranja e o espelho estilhaçado.


— Desta é que fico de vez sem casa — Rafael sentia melancolia, todas as casas que teve abusaram dele, exceto as da rua, o autocarro que pintou, os deuses que representou em vitrais para um sol que jamais surge. — Merda.


Recomeçaram a corrida, iluminados pelos néons notívagos, corujas verdes e flamingos cor de rosa, hoje eram criaturas, dragões em fuga numa cidade que a todos deita abaixo, eram resíduos no esgoto, sendo o esgoto ao ar livre, ao sol lunar.


— Rui, isto não é alucinação, já saltámos dessa parte — custava-lhe falar, sentia os pulmões a arder, mas sabia que necessitava de acalmar o irmão de armas, Rafael sempre foi assim, o irmão mais velho, o protetor.


— Não desperdicem tempo, ele está a morrer — a velha, a avó, a eterna voz sem rosto. — O mundo está a ruir como um baralho de cartas.


Chegaram ao topo, de lá viam tudo, observavam a história a repetir-se e uma antiga fábrica de papel em labaredas siderais, contemplavam os pirilampos a misturarem-se com os fumos que ocultavam a senhora da lua, e as criaturas aladas, centenas delas, em pânico.


— Quem está a morrer? — os olhos de Ricardo estavam presos no inferno do outro lado da metrópole.


Ninguém respondeu, nem o vento, nem as borboletas negras, os pirilampos flamejantes, e muito menos a avó, tudo o que se ouvia eram as sirenes dos carros dos bombeiros e uma máquina num ritmo cadente, os bips auxiliares na monitorização de uma criança no leito da morte.


— Vamos — Rafael embrenhou-se na mata que antecede a entrada para o rio, aquele local onde viram um príncipe a flutuar na sua própria imundice, seguido pelo resto dos dragões.

Desceram a encosta, caminharam até à rocha onde anteriormente haveram brindado em honra a deuses seculares e príncipes de lodaçais.


Oculta nuns arbustos estava uma rosa-branca, o local de morte e renascimento, na entrada de uma caverna estava Luísa, a raposa cor de fogo, de orelhas atentas, com o nariz a pesquisar o mundo que conhecia, no outro lado do espelho a avó rezava de olhos fechados.


— E agora, Rafael? — Rui observava o céu negro, sentia o vento gelado e a pele transpirada, o coração estava calmo, num ritmo constante, baixo, quase em sintonia com a máquina que sustém o Deus moribundo.


— Agora esperamos.


Quando os mundos estão em rota de colisão, quando se criam ilusões, histórias, cidades, sons e cheiros para se fugir à dor, quando tudo é apenas e simplesmente uma fotografia em movimento na cabeça sem coroa de um Deus, sabemos que o universo está a colapsar.


A avó saiu de casa, na sua frente existia um pântano de coisa nenhuma, o vácuo universal.


Naquele lado do espelho havia um tabuleiro de xadrez, um forno a lenha e uma cabana, depois, um outro local, um novo espelho, uma avó num cadeirão de cabedal a rezar, e existem as ligações neuronais de um Deus.


— Não fiquem aí — ela regressou à cabana, deu um gole no chá que fervia, goelas de avós são tolerantes à água fervente. — Tu sabes onde ela está, Rafael.


Na entrada da sua caverna, qual rainha de Gaia, a raposa moveu-se, saiu da proteção para o desamparo, Rafael tirou o capuz, revelando os seus caracóis loiros a brilharem na escuridão da noite que engoliu uma lua prateada.


— Pessoal, vamos — apontou para a raposa.


Todos obedeceram, ergueram-se do pedregulho, paladinos a envergarem as vestes do dragão, o azul, vermelho e verde, o rio, o sangue e a flora, na entrada, a raposa esperou, aguardou por eles.


No outro lado da metrópole, um paladino entrava num jazigo derrocado, uma fábrica de papel incendiada, destruída, tal como as vidas que para sempre ali mudaram.


Aproximaram-se da raposa, Luísa de pelo de fogo, sem pirilampos ou labaredas, esta farejou o ar, o odor, o bálsamo dos draconianos, os olhos brilharam-lhe em reconhecimento, por perto, a rosa brilhou, a avó sorriu, todas as peças do jogo são importantes, todos os paladinos, as suas criaturas notívagas.


— Sigam-na, ela vai mostrar-vos o fantasma.


A raposa adentrou na caverna, seguida por Rafael, Rui e Ricardo, ali chovia, no coração da terra, na alma de uma criança que luta por se manter viva, alimentada pelo sopro falsificado da vida, protegida pela avó.


Os três R’s estavam estarrecidos, seguiam uma raposa como numa fábula, num conto infantil, ouviam uma voz do outro lado da realidade, mortais num livro inventado nos caminhos neuronais de uma criança, paladinos de outrora na realeza do agora.


Nas paredes cresciam rosas, roseiras brancas e negras que brotavam da rocha e se fundiam no ventrículo da criança que sonha, a raposa ia em passo firme, não existiam interseções, apenas curvas, músculos, neurónios.


— Não tínhamos já estado nesta caverna? — Rui estava simplesmente embasbacado.


— Sim — respondeu-lhe Ricardo. — Quando éramos crianças, lembram-se da Jéssica? Ela gostava do rio.


— Lembro, mas… — Rui franzia a testa, tentava recordar-se dos momentos de infância, das brincadeiras junto ao rio, da Jéssica e a amiga. — Porra!


A raposa parou, Ricardo e Rafael pararam, o tempo estagnou, as gotas de chuva do universo enclausurado numa gruta estancaram em pleno ar, até a fragrância das rosas se suspendeu no firmamento.


— Luísa? — ele olhava para a raposa, para os olhos dela, para a alma, para a lágrima que lhe brotava da sua essência. — É ela, a companheira de Jéssica!


A própria avó foi surpreendida pela afirmação, não por desconhecer a origem da raposa, mas pela perspicácia do paladino de cabelo negro.


— Ela é a chama da vida, meus paladinos.


A raposa reiniciou a passada, não sem antes soltar um som, uma nota musical em direção a Rui, um “Obrigado!”, em todos estes anos julgou ter sido esquecida, devorada pelo urso, desmemoriada da humanidade.


— E existe outra coisa — continuava Rui, enquanto a seguia. — A caverna era cheia de bifurcações, e agora, é um roseiral, aqui, a crescer em rocha bruta.


Os outros percebiam, viajavam entre dimensões, em mundos paralelos, em histórias ficcionais, na criação de um deus, e estavam a deixar-se ir, eram a água do rio, o sangue nas veias.


A seguir a uma curva apertada, sem bifurcações, sem túneis extras, na parede da esquerda, o jardim de Éden na alma da criação abriu-se, dando lugar a uma porta com o ‘yin’ e o ‘yang’ numa balança… toda a escuridão se forma na luz, toda a luz na escuridão.


Luísa parou junto à porta, os rapazes observaram a majestosa entrada, a inscrição, o desenho, os olhos azuis da criança que não estava lá.


— Abram-na e entrem — a avó do celestial universo, mãe de Gaia, mãe da criação.


Rafael obedeceu, abriu, entrou, Ricardo seguiu-o, Rui ficou para trás, na esperança que Luísa os seguisse.


— Ela ainda não pode entrar, Rui — a velha tratou-o pelo primeiro nome. — Tem trabalho a efetuar, mas não vai demorar, ela representa a vida, vocês são a esperança.


A raposa de fogo voltou ao corredor, para trás, para a entrada da caverna, do coração da cidade do pecado, e Rui entrou.


— Bem-vindos — a voz era desconhecida, de um adulto.


Na sua frente estava um homem em tronco nu, com uma rosa-branca tatuada no braço, os outros amigos estavam parados, a observá-lo.


— Quem és?


— Por que elaboram as pessoas sempre as perguntas erradas?


— És o fantasma?


— Acho que não sou assim tão assustador — brincou o homem da pureza. — O meu nome é Marcos.


— Que fazes aqui?


— Finalmente uma boa pergunta — o homem vestiu uma camisola que se encontrava nas costas de uma cadeira. — Estava à vossa espera, a avó pediu que o fizesse, mas agora, vou ter que vos abandonar um pouco.


— Por quê? — indagou Ricardo.


— Existem paladinos a recrutar, criaturas necessárias para salvar a filha de Gaia, eu vou buscar o último, a Luísa irá trazer os últimos dois.


— Salvar quem? — foi a vez de Rafael.


— No fundo, meus caros dragões, salvar a criação, a existência e o próprio universo. Nós os paladinos fomos marcados pela rosa, uns de forma ténue, outros nem tanto, eu tenho esta na mão, cuja roseira cresce até ao cotovelo, e aposto que vocês os três também têm.

Eles recordaram-se, as “escamas do dragão” verde, azul, vermelho, não eram escamas, mas sim pétalas desenhadas na pele, a união deles, que julgavam ter origem na mitologia asiática, vinha dos roseirais de Éden.


— Temos.


— Bem, tenho que ir buscar o bombeiro, até já.


O ser de luz, fantasma, homem, imortal na mortalidade do universo saiu pela porta que se fechou nas suas costas, os dragões ficaram no covil, a aranha era menos que uma memória, e a noite não tem fim.


Na cidade as sirenes não se calavam, uivavam ao luar escondido pelo fumo, obstruído pela morte, recolhiam dores futuras para um hospital onde a candura um dia verá a alvorada.



1 Comment


Carlos Palmito
Carlos Palmito
Nov 16, 2022

Pois é, temos paladinos a juntarem-se, temos máquinas, e deuses, temos vida e morte... e a cidade. nada está esquecido, ando a recuar no tempo para colocar as peças no devido local. Serei eu a velha no pântano?


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