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CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 18 — 13/07/2022

Mais um conto de Carlos Palmito. Essa é a terceira parte desse conto que mostra Jéssica, uma aprendiz de anjo. Saiba como essa história se desenrola. Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.


Leia, Reflita, Comente!

https://www.shutterstock.com/pt/video/clip-24352622-humor-surrealism-police-night-forest-flashlights-picking




PARA PROTEGER E SERVIR


por Carlos Palmito


Parte 3 — A busca


Metal incandescente, pessoas em pânico, morcegos a guinchar nos céus, pó de labaredas, de abandono, desespero, suor, perdição, sirenes, ordens, caos, Deus observa a sua criação a conjeturar o passo seguinte, quieto, imóvel, um adorno no paraíso celestial, uma invenção criada para não temermos a noite… pobres ignorantes!


— Que viemos fazer aqui? — indagou Jéssica, estava atónita, com o estômago ainda vulnerável da lembrança do seu primeiro corpo, a observar a correria sem fim de homens e ambulâncias.


Samuel olhou-a em silêncio, com os seus olhos castanhos, pequenos, rasgos de realidade, à procura da veracidade na alma da sua pupila, estaria ela preparada? Queria acreditar que sim, que as profundezas negras do olhar dela contivessem a força necessária para aguentar a carga.


— Viemos procurar o dono disto — deu duas pancadas suaves no seu casaco, onde se encontrava oculta uma lata de spray, parideira de dragões azuis, monstruosidades deíficas.


— Não vamos ter problemas por ignorarmos as ordens da central ao virmos aqui?


— Não te preocupes Jéssica, assumo total responsabilidade — desligou o motor da sua carruagem e saiu para o exterior, acompanhado pela sua pupila. Estaria ela realmente preparada?


O mundo tresandava a fumo, carne queimada, rosas, jasmins, ratazanas aladas e poeiras estelares, Jéssica colocou o quepe, como se disso dependesse a sua vida, Éolos corria, Nix observava, o resto dos deuses banqueteavam-se com as lágrimas dos seus seguidores.


— Anda Jéssica — apontou para um autocarro abandonado, ruínas de uma calamidade antiga que jazia entre arbustos e silvas. — Se ele estiver nestas imediações, será ali — parou o discurso a contemplar todos os homens que corriam e bramavam, os sacos negros que transportavam partes de vítimas. — Como raios tiveram coragem de fazer uma festa aqui?


— Quem é ao certo a pessoa que vimos procurar?


— Alguém que conheci faz tempo, depois conto-te, anda.


Seguiram em passadas lentas por um bosque de despojos, desperdícios humanos de uma tragédia secular, latas de cerveja, arame farpado, pedaços afiados de ferro, enferrujado pelos dilúvios intemporais, afastando-se desse modo da azáfama dos bombeiros e a sua incessante busca por vidas que teimam em permanecer mortas.


Entraram no autocarro, o interior contrastava com a noite, seria como um sol no centro de um buraco negro, o derradeiro vestígio de uma luz prestes a extinguir-se


O odor era de jardins imemoriais, remetiam para castelos e princesas, torres e dragões, planos existenciais que há muito foram expulsos da memória de uma noite infinda.


Tudo estava renovado, impecável, o couro dos bancos limpos, em alguns pontos, latas de tintas cheias, e o teto sarapintado de constelações, o universo é pequeno na cabeça de uma criança, de um deus.


— Rafael? — Samuel observava tudo, desde o dragão pintado num dos vidros a criar um rio até ao fogo a consumir uma folha de papel. — Estás aqui rapaz?


Apenas morcegos e a escuridão responderam, nem a lua brilhou ou o fumo desvaneceu-se, a algazarrava continuava junto ao armazém, um filme mudo que se não fosse trágico seria uma comédia.


Onde dançam os anjos quando as nuvens se dissipam, onde nadam as sereias quando os mares congelam? Farão patinagem sobre as suas caudas? Cantarão para os ursos e pinguins, e posteriormente para o vazio gélido de um planeta moribundo?


— Quem é o Rafael? — Jéssica passava os dedos sobre as inúmeras pinturas nos vidros, poderiam mesmo ser vitrais, desprovidos de anjos e arcanjos.


Samuel olhou para a neta que não era sua, por momentos tinha-a esquecido, olvidado até a sua idade, por instantes tinha viajado para longe, um pântano antes da primeira pessoa tocar o solo do pecado, viu a estaca cravada no coração da velha, a avó que não era sua.


No seu olhar dançavam cometas, no rosto lágrimas cristalinas, salgadas por oceanos da memória, no cabelo uma coroa de flores, rosas-brancas e negras.


— Todos temos dois lados Samuel, cabe a nós saber qual alimentar com uma maior frequência — a voz rasgava os ouvidos, mas no mesmo instante era melodiosa — E desengana-te, anjo de azul, se pensas que consegues apenas alimentar o branco… ou o negro.


— Samuel? — a rapariga dos cabelos cor da noite desguarnecida de luar ouviu a voz, ouviu a memória, os vitrais vibraram.


— Samuel? — insistiu ela, não existia um ser puro, um embrião, antes de ser tocado e manipulado pela humanidade, antes de imiscuírem-lhe os valores humanos sobre o bem e o mal.


— Porra, acorda, estou a ficar com medo. — o que é um ser desprovido dos valores morais sobre o divino e o satânico? Um sociopata? Poderá um embrião ser um sociopata? Terá ele tal capacidade? — De quem é esta voz?


Ele piscou os olhos, acordou do transe, o pântano foi substituído por assentos de couro, estava sentado no lugar vinte e cinco, na sua frente um anjo de olhar negro, no teto constelações, na reminiscência a voz da velha.


— Desculpa — sentia-se embaraçado. — Ele não está aqui, vamos, existem mais locais onde sei que ele costuma estar.


— De quem era a voz?


— Explico-te ainda hoje, mas agora temos que ir.


Em menos de cinco minutos estavam no carro, os pirilampos dançavam com as ratazanas aladas nos céus de uma cidade que jamais conhece o dia.


Os faróis da viatura número cinco, seis, um, acenderam-se, Jéssica mirou por uma última vez os bombeiros, antes de o carro transpor a curva e com isso os perderem do campo de visão.


No seu íntimo gostava de ter uma reunião com a administração celestial, para saber que entidade tinha sido a responsável pela autorização da festa, a história repete-se, o papel clamou para mais almas. Existirá um Deus do papel?


Eram muitas horas e apenas alguns minutos (O tempo deixa de ter importância quando vivemos presos numa noite sem fim, quando somos meras marionetas de Nix.) quando estacionaram o carro em frente a um snack-bar, o néon gritava “AR IR ADO” tinham chegado ao local seguinte.


Jéssica colocou o seu quepe uma vez mais, o escudo protetor da negra cabeleira de uma aprendiz de anjo.


Abriu a porta, saiu para o exterior, o lixo bailava com o vento, as luzes publicitárias de um arco-íris grelhado tremeluziam, as estrelas apareciam e desapareciam por entre o fumo da fábrica de papel.


— Vamos. — Samuel estava recomposto.


— Existem segredos entre as linhas, ocultos, à vista de todos — a velha sussurrava com o vento, os poros da derme da rapariga dos olhos negros, arrepiaram-se.


As portas onde as cores são consumidas abriram-se de para a par, escancararam-se para receberem os seus clientes, uma meretriz num beco lamacento, um arco-íris grelhado, já desbotado, pálido, da luz das estrelas, como serão os arco-íris lunares?


— Em que posso servi-los? — uma rapariga de tranças cor-de-rosa e a cara cheia de sardas sorria para os polícias, os clientes olhavam em desconfiança, aqui vivia a escória humana, uma repetição ambulatória que se arrasta entre arco-íris e masmorras.


— A Maria Madalena está? — indagou Samuel.


— A velha? — mal as palavras saíram, a rapariga tapou a boca. — Desculpe, não está, hoje faltou.


— Obrigado — ambos os policias dirigiram-se para a saída, na ombreira da porta Samuel olhou para trás, piscou o olho e retorquiu algo que lhe ficou preso na cabeça. — Não te esqueças, trancinhas, um dia também serás velha, a não ser que te percas pelo caminho.


Os seus mil e duzentos cavalos esperavam-nos, a viatura número cinco, seis, um. A chave rodou na ignição, as luzes rasgaram a escuridão, os cavalos relincharam, fizeram-se à estrada numa galopada furiosa.


— Quem é a velha? — Jéssica estava confusa, segurava o quepe nos joelhos, o intercomunicador estava em silêncio desde o beco, a central estava muda. — É a da voz que ouvimos?


— Não, essa é outra, esta aqui é uma amiga de longa data — calou-se, existem espinhos no caminho até aos tempos que se perderam. — Podíamos ter sido muito mais, mas ela casou com um merdas, e manteve-se sempre fiel a ele. Amei-a, hoje… recordo-a.


— É por isso que aqui vieste? Para… a recordares?


Samuel riu-se, existia melancolia presa na risada, a noite é dos poetas e dos amantes, onde andam eles nesta cidade?


— Não, minha querida, vim para ver se ela sabia do Rafael.


— Ele é filho dela?


— Não, o filho é outro merdas, ainda maior que o pai — a melancolia transmutou-se, como o vento que sopra de sul e repentinamente passa a vir de norte, gélido, cortante — O Rafael é o dono do spray.


— Porque não perguntaste à rapariga por ele?


— Porque a Maria Madalena costuma dar comida às escondidas ao puto, além que tenho a certeza que ela sabe os locais por onde ele deambula.


— E agora, mestre — a aprendiz de anjo riu da sua própria piada, mestre e aprendiz. — Aonde vamos nós nesta noite?


Ele refletiu, sabia onde morava a filha do argentino, uma das poucas que conseguiu transpor a barreira fictícia da cidade, entrar nas muralhas, no coração de uma criança em crescimento, ela era a chaga na alma de um deus, a exceção da regra. Ninguém entra, ninguém sai.


— Existem dois locais — o carro parou num stop, ao longe, no outro extremo da avenida onde iam entrar, um homem de gorro verde conduzia um carrinho de supermercado, seguido de perto por um gato. — A ponte em ruínas e o forte.


— Já estivemos na ponte — ela passou com os dedos pelos olhos, o cansaço estava presente, mas a curiosidade era grande. — Vamos ao forte?


A carroça de anjos fardados em azul seguiu para norte ao entrar na avenida, os flamingos eram néons, o fumo residente da noite estava parcialmente controlado, o céu um emaranhado de constelações, o vento gelado, a velha sussurrava.


— Quando os espelhos da realidade se quebram, quando os demónios extravasam do seu enclausuro, e os deuses se escondem, sabemos que o fim está próximo — Éolos calou-se, Nix permaneceu, Odin continuava com o homem do gorro. — Existem batalhas que têm de ocorrer, nelas reside a esperança de sobrevivência.


O coche de anjos parou no topo da avenida, onde se inicia um caminho de terra batida, ambos desceram do carro, no local onde já tinham estado, o rio, o barco afundado, apodrecido, desmemoriado, percorreram o percurso nessa estrada empoeirada a pé, o quepe ficou no banco do passageiro.


— Vamos descer até lá em baixo, existe ali uma coisa que te quero mostrar — enquanto falava, Samuel ligava a sua lanterna, Jéssica imitava-o, com os cabelos negros a esvoaçarem ao vento.


Caminharam por um trilho estreito, uma espécie de vereda até à margem do rio, este corria em direção ao final da cidade das criaturas notívagas, do lado de lá da fronteira existe um vazio cósmico, o absoluto nada na terra de ninguém.


— Que me queres mostrar?


Samuel apontou para um arbusto, do qual uma raposa fugiu, a lua surgiu.


— Aquilo, anda.


Mal se aproximaram do arbusto, os olhos da aprendiz de anjo cravaram-se numa rosa-branca que lá crescia, protegida pelas folhagens das mais diversas plantas.


— Como é que esta flor sobrevive aqui, tão isolada?


A raposa olhava ambos atentamente, no chão, junto ao arbusto estava uma mochila da cor dos cabelos de Jéssica.


Um observar mais atento mostrou a entrada de um túnel, a rosa permanecia na entrada, branca, imaculada, um guia para anjos.


— Ele está aqui dentro — apontou para a mochila. — É do Rafael.

Entraram na penumbra, nos segredos por desvendar, seguidos pelo olhar atento de uma velha que pereceu faz muito tempo atrás.


As lanternas iluminavam o caminho, para trás ficava a terra dos homens, ali o labirinto dos anjos e demónios, a estrada da redenção sem idade.




AUTOR

Carlos Palmito

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