Mais um conto da série, escrito por Carlos Palmito. Dessa vez Carlos nos conta sobre amigos de infância vivendo aventuras de dar inveja a Stephen King. Os relatos são tão reais que o leitor se sentirá na cena.
Leia, Reflita, Comente!
um bRinde Real aos que foRam
por Carlos Palmito
IG: @c.palmito
Assento de trás do autocarro, Rafael estava perdido uma vez mais no mapa global da cidade. Conhecia tudo, todos os locais onde pernoitar, desde a traseira deste ónibus abandonado junto à velha fábrica de papel até às catacumbas do forte, também este desprezado, mas hoje sentia-se confuso.
O vento estava gelado em demasia para o mês que corria (não era suposto ser primavera?). Sentia os poros da pele a arrepiarem-se com o contacto dele. Bóreas estava bruto, não queria partir assim tão cedo da cidade, escorraçado por Zéfiro.
No céu uma grandiosa lua cheia iluminava esta parte da urbe, a indústria largada aos deuses esquecidos, uma selva de ferro enferrujado, madeira podre e betão em pedaços, carcaças de uma era que jamais voltará.
Se existem fantasmas, esta é a casa deles, especialmente desde o grande incêndio, que ceifou inúmeras vidas aqui, pessoas consumidas num ápice, como a chama na ponta de um fósforo.
Coçou os longos caracóis loiros, era urgente acordar para a noite, para a beleza da rainha notívaga que ele tanto amava.
Levantou-se, vestiu uma camisola de capuz azul, cobrindo com ela a sua imponente guedelha, colocou a mochila negra às costas, e iniciou a jornada. Sabia para aonde ir.
Galgou a cerca, contemplando esta terra de ninguém. A devastação escondida entre silvas, arbustos e ferro, uma das suas habitações desde a fuga da última família adotiva, ele era um ser selvagem, sempre tinha sido. Não se regia pelas regras de ninguém, muito menos pelas de um pai tresloucado e uma mãe abusiva, nenhum deles do seu sangue sequer.
Desceu ao longo do rio, rápido, numa corrida contra Bóreas, ou lá qual seja a divindade aqui… já devia ser o irmão dele, mas com este vento cortante, nunca se sabe. “Quem chegar em último paga a cerveja”.
Parou na ponte nova, a que ligava a metrópole ao resto do mundo. Inspirou uma golfada de ar, para recobrar fôlego e continuar, estava atrasado.
Passaram-se dez minutos até chegar perto do destino; os degraus traseiros da casa de Rui, um dos seus poucos amigos, dos verdadeiros, não como aquelas merdas que ele ia conhecendo nas ocupas.
Sabia que Ricardo já lá devia estar, provavelmente a fumar uma ganza, (essa porra mata-lhes os neurónios, mas também o faz a cerveja) e a rir.
Parou perto, eles estavam lá, mas acompanhados, uma espécie de Deusa, com todas as linhas no sítio, cabelo castanho pelos ombros, vestido vermelho, seria talvez a Vénus dos becos lamacentos, ou então a mãe do capuchinho vermelho, senão a própria (onde estaria o lobo?).
— Não está pior, mas já fumei bem melhor! — ouviu-a dizer, enquanto devolvia o… pelo cheiro, charro, ao amigo de cabelo negro.
Pela frase, pela entoação na voz, e pelo mover das ancas quando partiu, ela seria o capuchinho e o lobo num só corpo, numa harmonia caótica, ou numa piada cósmica.
— Rui, quem era a gaja?
O amigo de cabelos negros pareceu nem o ter ouvido, ia repetir. A seu lado sentado num degrau acima, estava Ricardo, de olhos esbugalhados, como se tivesse acabado de conhecer o mais hediondo ser da metrópole das mil luzes.
— Vocês estão com uma cara pah — volveu Rafael. — Que se passa, ela era toda boa de costas e de frente um monstro, ou seria a mulher dos cabelos de cobra e vocês viraram pedra?
— Medusa… — retorquiu Rui, com a voz ainda trémula.
— O quê?
— Medusa, era o nome dessa de que falas — a voz estava mais calma agora.
— Medusa ou não, era toda boa, topaste-me aquele rabo?
A ganza estava a chegar ao término, queimando nesses momentos finais da sua existência, os dedos do cara-de-acne-de-cabelos-negros, e acordando-o de vez do seu estado petrificado.
— Queres matar o canhão? — indagou, oferecendo o último bafo a Rafael.
Este olhou; queria realmente dar um bafo, mas aquela coisa a arder já era mesmo só cartão.
— Nem por isso, talvez mais logo se tiverem mais.
— Mas temos — replicou Ricardo, que parecia também ter acordado do transe. — Nem acreditas como arranjei.
— Conta-me.
— No jardim, um cota com a cara toda amassada, deixou cair isso do bolso.
— Sério?
— Sim, mano, mas agora que penso, tenho pena. Isto devia, de certeza, aliviar-lhe as dores. É que, pah, nem queiras imaginar o estado daquela tromba, meu, parecia ter saído de uma luta com um urso, nariz inchado, um dos olhos também, não faço ideia da parede que encontrou, mas seja qual for quero manter-me longe.
— Perca dele, nosso ganho — redarguiu o caracoizinhos loiros, com entoação de troça. — Estamos prontos?
Tanto Rui como Ricardo levantaram-se de um pulo, pondo as mochilas às costas.
— Bora lá!
Partiram em corrida pela noite, chapinhando nas poças lamacentas dos becos e vielas nauseabundas, saltando sobre caixotes do lixo, sempre acompanhados pelo olhar atento da lua, e a sua escolta real.
Se existisse algum formato miraculoso de os transportar diretos para o destino, recusariam em uníssono, o prazer está na viagem, e não no destino, sempre foi assim com eles.
Ao virarem numa das ruelas, em direção à avenida, o cabelos-negros esbarrou direto com um carrinho de compras cheio de tralha, nem o viu quando fez a curva num salto, estatelando-se ao comprido no chão, em conjunto com garrafas de bebida e latas de conserva.
Viu um homem, nos seus quarenta, com a barba desgrenhada e um gorro de lã verde suja na cabeça a esbracejar.
— Tenham mais cuidado, idiotas de merda, putos dum cabrão.
Levantou-se, sem danos aparentes, olhou para o homem, e mostrou-lhe o dedo do meio, para a seguir se juntar aos amigos.
Dali seguiram para norte, acompanhando a avenida e todo o trânsito infernal. Os faróis, as luzes de travão, buzinas, (quem serão estes idiotas que buzinam noite fora?) contemplando os néones que tentam enganar a noite, desde flamingos cor-de-rosa a placards onde apenas se lê HOTEL, passando por semáforos verdes, vermelhos, laranjas.
Ao fundo, onde a Avenida vira abruptamente à esquerda, continuaram em frente, por uma estrada de terra batida, chapinharam na lama, continuando a corrida.
Se lhes perguntassem porque corriam, responderiam em coro que seria para fugirem da humanidade. Quanto mais rápido, mais velozes; melhor, escaparem da artificialidade, da quimera, da utopia, das aparências e aberrações que habitam a alma de todos os seres, eles inclusos.
No topo de um monte, entre arbustos e árvores desgrenhados, onde a estrada de terra batida se dissipava, vislumbraram-na, a ruína metálica, vermelha, escarlate, como a medusa do beco. Bela e assustadora, iluminada tenuemente pelo olho lunar e suas milhares de acompanhantes, senhoras estrelas, constelações universais de um universo em decadência.
Sorriram, enquanto Zéfiro afagava as suas faces destroçadas por acne, Bóreas parecia ter finalmente cedido lugar, ou então era a transpiração, contemplando fascinados aquele monstro de metal.
Desceram, agora em passada lenta, até ao rio, no alto começaram a surgir algumas nuvens, mas o luar ainda conseguia iluminar o caminho.
Lá em baixo, saltaram sobre umas pedras, na margem do rio, ali conseguiam visionar na totalidade a majestosa figura da ponte antiga. Era impossível desligar os olhos desta abandonada divindade férrea, esquecida há quase tanto tempo como a fábrica de papel. Por ela, passavam diariamente, inúmeros vagões com material de, e para a fábrica; hoje, é apenas história esquecida.
— Rafael? — a voz do puto de cabelos negros sobressaltou os outros, bem perto, entre os arbustos, uma raposa fugiu, mantendo o olhar fixo neles.
— Diz?
— Qual é o plano? Não sei se reparaste, mas por terra é impossível chegar à ponte, o tabuleiro está totalmente escaqueirado.
O guedelhas loiras começou a despir as calças, a sua falsificação de “All-Star” já estava na rocha, tal como as meias.
— Agora, nadamos, subimos pelo pilar central, tem ali umas escadinhas, espetadas nele, chegam lá acima.
— E os sprays? — indagou Ricardo.
— Vão nas mochilas, deixamos aqui a roupa, levamos apenas as mochilas. Trouxeram as vossas cores?
Os outros anuíram, e começaram a despir-se, espalhando calças, boxers, meias por toda a rocha. Colocaram as mochilas nas costas e entraram na água, estava menos frio que esperavam.
Demoraram quase cinco minutos a chegar ao pilar, e mais um, a emergir da água, como se fossem os filhos de Tritão, numa muito deturpada versão alternativa do cosmos.
Subiram pelas escadas, pequenas protuberâncias metálicas incrustadas no granito do pilar, até ao tabuleiro central.
Ali, deitaram-se de costas a contemplar as nuvens noturnas, que viajavam livres na prisão notívaga, fantasmas a deambular sobre a imensidão de um mundo que deixou de acreditar.
Ricardo abriu a mochila, tirou de lá uma garrafa de vinho, abriu-a e ergueu em direção ao breu dos céus.
— A vós brindo, Reis dos mortos, soberanos dos vivos, ilusões da deceção, tentativas inúteis de orgasmos cósmicos — deu um trago prolongado, deixando um pouco do vinho escorrer pelo corpo nu.
Os amigos riram-se, mas beberam do mesmo brinde.
Pegaram nos sprays, e começaram a desenhar no tabuleiro três R’s, verde de Rui, vermelho de Ricardo e azul de Rafael, gigantescos, em formato de dragões, queriam que fossem vistos de longe, do próprio purgatório, se possível.
Foi uma tarefa árdua, especialmente contornar sombras nas escamas destes R’s draconianos, demoraram quase duas horas até darem por findado o trabalho.
Rafael contemplou a obra na sua máxima magnificência, sorriu de novo.
— O corpo pode ser mortal, mas a arte, meus amigos, esse é intemporal.
Desceram de novo as escadas, a garrafa de vinho vazia ficou lá no topo, junto à arte urbana.
Ricardo foi o primeiro a entrar na água, seguiu-se Rui, e por fim Rafael, e iniciaram o percurso aquático em direção ao rochedo.
Mal tinham saído, Rafael sentiu um arrepio atravessar-lhe o corpo, lembrava-se da sua avó dizer serem espíritos.
“Era uma vez um príncipe.”
Olhou para trás.
— Parem, esperem — urgência na voz, na ordem, no pedido, poder-se-ia dizer na imploração. — Está ali qualquer coisa, nos ramos atrás do pilar.
— Deve ser lixo, vamos embora — reclamou o gadelhas-negras.
— Não pah, é sério! — começou a nadar de novo em direção ao pilar, sentindo o ar tornar-se nauseabundo, podre, enxofre vindo direto das planícies infindáveis do reino de Hades. — É um corpo, está ali um corpo.
Agarrou-se nas escadas para ter um ponto para se firmar.
— Ricardo, anda cá, dá-me uma ajuda.
— Tás parvo meu? Nem pense que me aproximo disso.
— Achas que morto vai-te fazer algum mal?
“Que tinha um reino de couro e um tablier de madeira.”
— Já vi demasiados filmes para saber que isto vai correr mal.
— Chega-me só aquele ramo ali, para eu conseguir desprender o corpo, e nada para a margem.
A medo, Ricardo obedeceu, passou o ramo ao amigo.
— Como é que não percebemos este cheiro antes?
— Não faço ideia.
Segurou o ramo, empurrou na direção do cadáver. Pressionou sentindo-o espetar-se. O ar nauseabundo intensificou-se, ultrapassava neste momento os limites do respirável, e sentiu o corpo deixar de oferecer resistência, estava liberto da prisão do pilar, começou a deslizar pelo rio abaixo ao sabor da corrente, levando com ele o odor de morte.
Rafael entrou na água, nadou de volta para as rochas, onde os seus amigos o aguardavam. Vestiram-se, ainda molhados, com pressa de se irem embora.
Num arbusto bem próximo de onde estavam, o local de onde anteriormente a raposa tinha debandado, florescia uma rosa branca pigmentada na derme.
Encararam uma última vez as turvas águas do rio, incrédulos.
— Que porra foi aquela? — perguntou Rui.
— Sei lá! O que não entendo é como não percebemos o cheiro antes — volveu Ricardo. — Por que o mandaste rio abaixo, Rafael, não era melhor chamar a polícia?
— Não sei, impulso! — respondeu o rapaz loiro. — Na minha cabeça pareceu-me ouvir a voz da minha avó a dizer para o fazer.
Fizeram uma pausa de silêncio, juntos, embasbacados com o rio que tudo leva. Ao longe ouviram uma coruja.
— Rui, abre a outra garrafa de vinho — pediu Rafael.
O miúdo de cabelos negros abriu-a e passou-lha. Este ergueu-a em direção ao rio, fez uma breve vénia teatral, como numa atuação de Shakespeare.
— Boa viajem, príncipe dos mortos — bebeu um trago prolongado sentindo o quente do álcool aquecer-lhe o espírito que tinha gelado frente ao homem morto.
AUTOR
Carlos Palmito
Espectáculo de conto!!!!! Palmas palmas palmas! Eu estava ali com os 3 putos a viver a cena! Parabéns Carlitos! Nunca desiludes
Carlos, como sempre, “show” de bola! Rachei o bico da fala do homem-dos-quarenta: "putos dum cabrão" Que venham mais!
O conto dessa semana me remeteu ao filme “Conta comigo” de Stephen King. Senti-me o tempo todo dentro da cena, nadando com os personagens, descobrindo o corpo. Foi tão real e intenso que virou cena de um filme na minha cabeça. Parabéns Carlos. que continue assim, melhorando sempre. 😊
Para o dia a dia desta semana, meus desejos de que tenham felicidades do tamanho que as imaginam. Li o seu conto Carlos, muito dinâmico e que nos prende atenção. Amo Arte com sendo imortal. Parabéns por dedicar suas horas com a dedicação de uma escrita tão aperfeiçoada. 😍
Bom dia a todos! Mais uma quarta-feira, mais uma publicação. espero que estejam a adorar ler estas criaturas, tal como eu estou a adorar escrevê-las. O meu sincero agradecimento à Valleti por me ceder este espacinho.
Um abraço a todos vós.