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CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 27 — 14/12/2022

A saga continua...


O submundo da cidade que não dorme, esconde olhos que vigiam. Enquanto a raposa, a velha, Jéssica, Marcos e tantos outros personagens circulam pelas cavernas, Felício observa todos através de seus monitores. As ações de todos podem ser premeditadas com as astúcias de Felício. Ele, com decisões ímpares, ordena que seus asseclas invistam contra os invasores de seu reino, evitando que alcancem seu destino. Afinal, a garota será liberta? O gigante será derrotado? O que mais a aprendiz de anjo tem que assimilar em sua evolução?


Apesar das perguntas parecerem sem respostas, o que não se nega é que Carlos Palmito captura nossa atenção de tal forma que nos sentimos presos em sua teia de tramas.


Que venham muitos contos como esse. E você? Vai conseguir se desvencilhar desse labirinto fascinante?


Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.

Peter Paul Rubens (1577-1640), The Fall of the Damned, ca 1620, oil on canvas, detail.
 

AUTOR CARLOS PALMITO


Nasceu na cidade de Évora, Portugal. Aprendeu a ler e escrever antes de iniciar a escola, por força e dedicação da sua mãe. Trabalha na área de TI, apesar da sua verdadeira paixão se encontrar na escrita, sendo nela que despende grande parte da sua energia. O primeiro livro que leu, e um dos que mais o marcou foi “O Conde de Monte Cristo”, teria sete a oito anos na altura, mas desenganem-se se pensam que ele se fixou só por romances, pois ele lia de tudo, desde banda desenhada a livros de geografia. Durante o seu percurso na escola, foi convidado a ingressar no jornal escolar, odiou esta parte, aqui descobriu que adora escrever ficção, mas odeia escrever sobre realidades. Tem como autores favoritos Alexandre Dumas, Júlio Verne, e o que considera seu ídolo e inspiração, Stephen King. Considera-se um apaixonado por letras, filosofia, psicologia e arte em geral, este autor desde cedo que começou a rabiscar contos e poesia. A sua criação hoje em dia rasa a loucura e a lucidez, a harmonia e o caos. Autor no blog https://allinone.blogs.sapo.pt

 

CONFLITOS


Taberna, como Felício adorava o aroma delas, o cheiro a vinho azedo, a suor, gordura frita, tabaco, decadência e depravação.


Neste momento era isso que parecia a sala da segurança, garrafas de vinho abandonadas pelos cantos, a escorrerem o seu sémen de uvas nas parcas mesas existentes, pontas de tabaco misturado com erva a atolarem cinzeiros; e ele, o rei louco do submundo a percorrer com o seu olhar cinza todos os monitores, cada um, a mostrar uma visão diferenciada do seu reino, espiões do bruxo monarca.


Emborcou um gole pelo gargalo da garrafa que estava nas suas mãos, vazando-a e atirando-a contra a parede, a qual se despedaçou em milhares de fragmentos, que ficaram a cintilar à luz amarelada do candeeiro, que zumbia, lembrando vespas em fúria.


Nos ecrãs que mostravam o pátio externo, via uma mulher de vestido vermelho a estraçalhar vida após vida dos seus zombies putrefactos, guerreiros movidos a heroína, cocaína, pó de anjo, ilusão e desilusão, como se fossem páginas mal escritas, arrancadas e amarrotadas de um livro em mutação.


Noutro ecrã, via um gato maltrapilho a lamber o nariz da criança enjaulada, e sair por um buraco na parede, depois de novo o pátio, a entrada da loucura, da perdição, junto à parede movia-se o sem-abrigo, nas mãos trazia uma lâmina que reluzia morte.


O televisor central mostrava a lua, vermelha, a sangrar, chorar… por quem? Jamais o saberia.

Tateou a mesa em busca do telemóvel, com os olhos presos na alfa da alcateia.


— Esta é perigosa! — murmurou o vazio.


— Que venha, eu sou o ceifeiro! — respondeu o seu pensamento.


Encontrou o objeto, pressionou o botão de remarcar e esperou, a ouvir os bips de chamada, enquanto observava o rosnar da senhora de vermelho.


— Diga chefe — a voz do lado de lá das comunicações sem fios lhe arrancou a atenção da neblina em formato de alcateia.


— Dino, preciso que mandes dois grupos de homens, um para os túneis, o outro para o pátio — as câmaras espalhadas no submundo mostravam o caminho do gato. — Diz a quem for que lhes pago o valor de um mês do lucro da masmorra.


— Qual grupo quer que eu dirija?


— Nenhum — curioso o percurso do felino, parecia dirigir-se para o rio. — Vou precisar de ti na arena — Mateus degolou um dos seus soldados com a cantora da escuridão. Pobres coitados, lenha para fogueira.


— Mas chefe!


— Não existe, mas — aonde iria o gato? Perscrutou as câmaras mais avançadas das cavernas… e avistou a aura branca, o seu coração disparou que nem um cavalo a galope nas areias quentes do tempo. — Quero-te no patamar número quatro em menos de dez minutos.


— Certo, chefe — notava-se desilusão na voz do gigântico, desamparo, um predador quer sempre e eternamente estar no campo de batalha.


— Dino, diz ao grupo dos túneis para se manter à distância do gato, eles que o sigam, mas só ataquem de surpresa, ou melhor ainda, preparem uma armadilha ao grupo que o gato vai buscar.


Existiu uma pausa, um quebrar de realidades, o monitor do pátio mostrava o sem-abrigo a esventrar mais um dos seus guerreiros do pó, cravar-lhe a faca no abdómen, rodar e rasgar, até o alvo cair sobre as suas próprias fezes, que jorravam pela abertura.


— Outra coisa, esta sobre o querer-te na arena, não te revelo já, mas digo-te, vais adorar ter ficado para trás — No fundo, tinha pena do seu número um, o primeiro recruta do império da rosa-negra, Dino, o homem sem sobrenome.


— Espera, não feches a porta, a Luísa ainda não entrou — enquanto falava, Rui colocou o seu pé número quarenta e quatro na frincha da porta, impedindo nesse gesto o cerrar da mesma.


— Quem? — nesse exato instante, a raposa cor de fogo, sereia de um rio existencial na memória, passou junto às pernas da aprendiz de anjo, roçando-lhe as calças levemente, na passagem, qual fantasma de uma noite de verão.


Nem Samuel, nem Jéssica a haviam notado anteriormente, a segui-los em silêncio, com memórias de um rio e perguntas sobre a existência dos Deuses.


“ — Para que foi isso, minha parva? — indagou a reminiscência.”


“ — Para te mostrar que nem tudo é mau, e que muito do que existe de mal não é culpa dos Deuses, mas sim do homem — respondeu à recordação de uma amazona de fogo…”


O último selo na mente de Jéssica fragmentou-se, a derradeira estampa ruiu nos pilares da sua existência, os olhos verdes da raposa transluziram, lembrando pedras preciosas ao luar, e a aprendiz de anjo forçou as lágrimas a permanecerem na alma.


— Luísa? — os olhos negros da pupila de Samuel cintilavam com as águas da dor.


A raposa ruiva encarou a menina dos cabelos negros.


“… fogo e carvão…”


Um artista nos labirínticos espelhos de realidades em colisão pintaria o quadro a sangue, o reencontro das irmãs de úteros diferentes, pontas opostas de um tubo, que se amavam mais que as próprias raízes da árvore-da-vida amam Gaia.


Jéssica ergueu o olhar da sua amiga, e encarou o homem da rosa de branco, toda aquela noite de muitos anos atrás regressou ao seu palácio mental, abriram-se todas as portas e dissiparam-se as névoas.


— Tu — acusou ela, o mar salgado do seu olhar negro que nem um dilúvio rebentou o dique que o continha. — Foste tu quem a levou para o rio.


Seis pares de olhos nos seus mais díspares cromatismos voltaram-se para o imortal, aquele que não nasceu e jamais morrerá.


— Era a única solução, Jéssica — a raposa aproximou-se do homem que se tentava defender da acusação, existem alturas em que as lacunas da memória são preenchidas pelo que julgamos ter acontecido. — Só assim ela poderia renascer — Luísa lambeu a mão do detentor da luz.


— Paladinos — a voz doce e firme, a cheirar a bolachas e chá de ervas desconhecidas, vinha do outro lado do espelho, da realidade do pântano, da garganta da avó. — Estamos finalmente todos juntos, e sei que o momento é de tensão, mas temos que ir, muito depende do que vai acontecer.


— Mas ele matou-a! — gritou Jéssica.


Rafael abriu a porta que se fechara após a entrada de Luísa, expondo o ‘yin’ e ‘yang’ nela desenhados.


— Não, minha querida! — ternura, era isso que exalava de cada sílaba pronunciada pela senhora do tabuleiro de xadrez. — Ele salvou-a.


— Como? — soluçou a aprendiz. — Arrancando-lhe a cabeça? Atirando-a ao rio?


— Depositando-a no rio, sim. Mas a cabeça não foi ele, foi a besta.


— Qual besta? — gritou Jéssica em dor e agonia, os olhos negros chispavam faíscas azuladas e lágrimas de lava queimavam o seu rosto na passagem. Raiva por tudo o que perdeu, ódio a todos, a pétala na axila incendiou-se. — Eu estava lá, não existia besta.


— Jéssica — era Rui quem falava agora, por detrás das suas próprias esmeraldas. — Olha para a Luísa — Os olhos da aprendiz estavam fitos em Marcos, queria rasgar-lhe o coração do peito e beber a sua alma. — Olha para ela, porra. Achas… acreditas mesmo que se o que a avó diz fosse mentira, ela iria ter com ele? Ela estaria ao lado dele? Ter-lhe-ia lambido os dedos?


Samuel aproximou-se da neta que nunca teve, pousou as suas mãos sobre os ombros da aluna e obrigou-a a virar-se para si.


— Usa a razão — ela debateu-se perante as palavras do seu mestre. — Sei que dói, estás a reviver tudo ao fim destes anos, uma memória que te foi escondida voltou, e dói, se queres bater em alguém, bate em mim. — Jéssica encostou a cabeça no peito do polícia, e chorou, verteu todas as lágrimas que não pode derramar antes.


— Pessoal — Ricardo continuava junto à porta, com a mão no centro do universo, no meio do ‘yin’ e ‘yang’. — Temos que ir.


A velha sempre os soube escolher bem, Ricardo, o filho da rua e do vento, rebento de Deuses primordiais, crescido, maduro, atento. Uma alma completa em si nunca se consegue falsificar, e Ricardo era isso, a conexão de corpo e alma num habitáculo em crescimento.


— Por que não me contaste antes, Samuel? — a fúria ainda se encontrava lá, pulsante.


— Ele não podia, doce criança! — a avó ponderava as palavras, uma errada poderia conter o colapso da lucidez.


— Cala-te, a criança em mim, morreu faz tempo, e mais, não te quero ouvir — cada sílaba pronunciada lembrava o sibilo de uma cascavel, roçando o ódio. — Roubaste-me as memórias.


— Dei-te uma infância.


— Deste-me pesadelos, sabes? — e eis a volta da raiva, desencostou-se na totalidade do seu guardião, mestre, avô que nem se recordava de ter tido. — Por noites a fim sonhei com aquilo, apesar de a mente me dizer não ter existido.


— Pessoal? — Rafael estava a ficar impaciente, a porta pesada, Marcos em silêncio, com o olhar preso ao chão, sabia que qualquer som que proferisse aumentaria a amargura da aprendiz de anjo.


— Jéssica! — Samuel de novo, voz em tom paternal, sabia a dor que ela tinha, conhecia-a.


— Por que não me contaste? — a rapariga dos olhos desenhados a carvão e cabelo negro como borboletas começou a afastar-se lentamente na direção da porta, com a sua pétala a latejar, a transmutar-se entre o branco e o negro, a queimar.


Na cidadela da desilusão todos são corruptíveis.


— Era a única forma de te salvar — o polícia dos olhos avelã apontou para Marcos. — Ele deu uma nova vida a Luísa, uma oportunidade única nesta cidade abandonada pelo sol. Depois tirou-te do rio e levou-te ao colo para a casa daqueles que julgas serem teus pais.


— Aqueles que julgo? — no negrume dos olhos nasceram raios vermelhos. — Que porra estás a insinuar Samuel? — uma nova passada rumo à porta do ‘yin’ e ‘yang’. — Que mais me esconderam? Aliás, não me respondas. Odeio-te, odeio-vos.


Correu para a porta, abriu-a com tal brutalidade, que nem Rafael a conseguiu conter, caindo desamparado no chão de pedra, na frieza de Gaia.


Tentou regressar por onde viera, queria ir para o rio e nadar para longe de tudo, em direção às próprias estrelas, se fosse possível. Aos anjos que morreram no seu coração, contudo, no caminho, desde o fechar e reabrir da porta da união cósmica, nasceu um roseiral intransponível, uma barreira branca e negra a cheirar a morte, a jardins no coração de um Deus que a queria ali.


Fugiu então no sentido oposto, a aprendiz de anjo perseguida por pétalas, com chuva salgada a transbordar dos seus olhos negros, rolar pela face rubra de ódio, e tombarem inertes do útero de Gaia, quais migalhas de Hansel e Gretel numa floresta em direção à perdição.


Atrás de Jéssica saiu disparada a raposa, fogo e carvão, assim eram, assim seriam.


— Vão — a velha, pânico na voz, o peão no tabuleiro de xadrez a perder-se. — Protejam-na, corram.


Os seis dispararam em corrida, a velha calou-se, a senhora da lua estava longe, o Deus no seu leito teve uma convulsão, soaram alarmes celestiais, as estrelas apagaram-se momentaneamente.


Luísa, a amazona de fogo acelerava a velocidade atrás da sua amiga de infância, todas as possíveis passagens, entroncamentos, cruzamentos, estavam fechados por roseirais impossíveis de transpor, o caminho era uma linha reta.


— Por que me mentiram? — chorava a alma de Jéssica.


Correu até as pernas cederem, a rapidez de transmutação da sua pétala era tal, que neste momento era somente uma mancha na derme.


— Por que me mentiram? — soluçou sentada no colo de Gaia.


A raposa surgiu, aproximou o focinho do rosto da companheira de mil aventuras há milhares de anos, lambeu as suas lágrimas, na tentativa de lhe expiar a dor do espírito.


— Eles não podiam Jéssica — a voz era de uma criança de treze anos. — Não os odeies, foi para te proteger — o pelo cor de fogo da raposa foi acariciado pela suavidade da mão de Jéssica, por todas as mãos que a aprendiz de anjo teve aquando do seu crescimento ao longo dos anos. — Eu estou aqui, estamos juntas de novo.


A pétala fixou uma cor, fogo, o cromatismo de uma fénix, de uma raposa, vermelho, rubro, escarlate como os rios do inferno.


Ao longe ouviam-se passos apressados, seis pares de pernas em desespero.


No outro lado do espelho, a velha suspirou de alívio, o peão continuava em jogo, do seu lado.


Algures numa casa onde um dia viveu um príncipe com hálito pútrido dançavam uns pés no ar, na ilusão de estarem a caminhar nos viridários de éden, o nó de forca ganhou a batalha, e levou Maria Madalena embalada pelo som de um violoncelo.


 

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1 Comment


Carlos Palmito
Carlos Palmito
Dec 14, 2022

Bom dia meus amigos, deixo-vos aqui o mais recente conto das criaturas, da cidade sem dia, detentora da noite eterna, de todas as personagens que criei. Leiam, curtam, comentem, seja comentar o que for, como for, porque for. Um abraço apertado para vós

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