ALEGRIA MAURO
Alegria Mauro Manuel, de Angola, formado em engenharia de geologia, participou na antologia angolana N'zila - caminho de sonho e nas antologias brasileiras Encantos Nordestinos, Taverna Poética, antologia Pessoa, cartografia do coração e representa a revista The BARD em Angola.
Instagram: @alegria_mauro11
1 - O PARALELO DA ALMA
O inverno soprava
Varrendo as estradas
E jogando flores ao mesmo tempo
Como nos filmes de romance
Onde entregam-se as almas
E selam os corações pelas causas nobres da alma
Soprava também adentro do meu peito
No sentido contrário às forças do universo
Se eu fosse ao norte
Ele soprava para o sul
Se fosse para o leste
Ele soprava para o mar
E se eu subisse o cume da montanha
Ele já não mais soprava
Mostrava-se nú aos meus olhos
E eu enxergava-lhe a alma
Via o sentido da vida
Escondido no fôlego do vento
E juntamente gravado nas entranhas do tempo
De imediato percebi as linhas paralelas da morte e da vida
Da dor e da alegria
Do ódio e do amor...
Até elas se cruzarem no infinito
Onde termina a vida.
2 - ÁFRICA, ÚLTIMA GOTA DE LÁGRIMA
Não sei mais escrever
Nem mesmo compor
Tudo que sinto por agora
É dor que escorre como tinta de caneta
E mata versejate a inocência desse papel virgem e branco
A minha própria mãe
Repito
Minha própria mãe
Que gerou-me em seus doces e negros braços
Que por ela, os verdadeiros cotas doaram um pouco e um tanto de si
Hoje!
Faz-me bastardo no colo que me abraçou
África minha
Minha mãe
Minha terra
Porque preciso mendigar para comer um pouco do teu pão
Com tanto trigo que banha o teu ventre
Porque preciso chorar,
Lacrimejar até a última gota da minha lágrima
Para contemplar a alegria da tua beleza natural
E dos teus maravilhosos mistérios
Se tu és minha mãe!...
Teus juízos minha mãe, são amargamente doces
Os cotas que te banham minha mãe
Têm seus desejos e vontades apontados para suas próprias mães
Dizem amar-te com palácios de areia
Enquanto têm castalos de luxo na diáspora
Celebram casamentos em tempos de carnaval
Dizendo jubilemos, jubilemos...
Enquanto viajam em jatos
Só para apertar os seios das moças que desfilam nas ruas de Paris...
Minha mãe
Não me maltrates
Sou teu filho que dorme e acorda no teu colo
Dás-me de comer migalhas
Mesmo assim, ainda estou aqui
Meu palácio é bem ali
Verte água, mesmo quando só faz vento
Tu conheces minha mãe
Não lhe peço nada
Senão um pouco de piedade
E uma gota de sangue branco
Para lavar essa bandeira
Como lavamos a 11 de novembro
E outros tantos dias
Dão-te anel de barro, dizendo é ouro
Dão-te trapos, dizendo é Pierre e outros cardãs por aí
Dão-te urina dizendo, é água pura PH7
Dão-te um montão de lixo, com marcas de luxo...
Minha mãe
Sei que és velha
Mas enxergas
Minha voz é só mais um grito
De um tanto de filhos que você gerou
Veja a Somália,
Veja o Sudão,
Veja o Congo,
Veja Angola
E mais outros por aí...
Somos feitos filhos de rua, mesmo tendo teto
Não sei dizer ao certo
Se esses cotas, são mesmo os nossos pais
Talvez sejam mesmo, aqueles pais de negros com pele branca
Sei lá mãe,
Não nos parecemos
Lhe escrevo essa carta,
Com gemidos na alma
Não sei se ainda viverei
Ou terei mesmo de vender a minha vida,
Só para matar a fome
Cultivei o algodão
Mas não me deram roupa,
Estou nú, até na alma
A chuva e o frio não me derretem
Porque Deus me fez de porcelana
Falo acorrentado ao pescoço
Com cicatrizes de escravidão nas costas
Minha fonte de lágrima já não jorra mais
Veja os ossos que sobressaiem em mim
E julga tu mesma
África
Minha mãe
Minha terra
Teus filhos te esperam!...
3 - UM LIVRO
Hoje
Vou ser um livro
Vou esfolhar as páginas branca e borradas de mim
Vou deixar-me tocar e ser lido por todos
Mostrar-me-ei ao mundo
Os contos que escrevi, agora podem ler
As poesias que recitei, podem sentir
Os desenhos que borrei, podem contemplar...
Leiam tudo de mim
Pois já não as refarei
Talvez só as sentirei novamente
Como o dia que os escrevi
Nos contos, que lerem
Minha personagem é a borboleta que deseja voar
Tocar nas flores
E sorrir sem sentir alegria nenhuma
Sei que em breve morrerei
Afinal, é a natureza de nós borboletas
Nas poesias
Só a voz de clamor
Que chora quando invocada
Aliás, sou eu a dor de um poeta
Que caminha descalço na estrada da esperança
Cheio de cacus
Tu - esses desenhos que vês aí
Eis-me aqui
O traço a lápis partido
Desenhado no canto duma lágrima da mulher que carrega a criança nas costas
E trilha quilómetros até o sol escurecer
Sou eu ali
...
Leia-me
Não ao contrário
Mas sim por tudo que mostrou ser
Sou um arquipélago de lágrimas
Que se afunda a cada grito
Minha poesia é turva
Meus contos são fuscos
Meu retrato, termina no ponto
Onde o lápis parte.
4 - SAUDADE
Não me parta os ossos
Peço-lhe
Nem mesmo o coração
(Falei para ela...)
Se te alegra
Leva a minha mente
E esgota tudo
(Gritei para o escuro...)
Faça as tuas vontades fora do meu eu
Não bata tão forte assim
Sabes que agarrei tua mão quando desejaste ir
(Saudade, minha senhora...)
Já não tenho medo
Que os dois fujam
Fujam sem levar a mão ao peito
(Levem convosco o vosso amor...)
Agora?
No instante que lhe ofereci
Sorriste!
(Bate, bate saudade...)
Muito alto
Porque é puro
Leve... E suave
(Ela sabe...)
Novamente gritei para o escuro
Mas era um vazio
Que se podia sentir a presença dela
(Sim, dela... A saudade...)
Estava lá
As lágrimas a viram
Aquando voava feito vendo
(Se escondendo tão perto...)
Não precisa mais
Carregarei sozinho a minha cruz
Sem ferir mais ninguém
(Outra vez falei para o escuro
Para ela...)
A saudade.
5 - UM SEGREDO
Após a primavera
Vi realmente que os tempos traem-se um ao outro
O sol é o mesmo
Mas ora decide não brilhar
As estrelas ora decidem se esconder
A lua ora decide desaparecer
Depois da primavera
Compreendi que tal como os tempos
O amor pode também nos trair
Fingir amar,
Cuidar
E desejar...
No fundo o seu rosto é cheio de rugas
Tem preferências que os olhos da carne não vê
Tem nomes e rostos que a mente desconhece...
Depois da primavera
Compreendi que as juras são outra forma de mentir
Mesmo quando se fala a verdade
Compreendi que os desenhos a lápis
Têm uma cor além do carvão
A primavera me disse
Aliás, vi ela aquando voltou
Já não era a mesma
Embriagava-se em tudo que é canto
Até nos lugares proibidos
Ela assubiava
Primavera
Dessa vez os tempos traíram-te
Já não floresce como as flores do campo
A rosa branca e outras rosas
Deixaste murchar
Vejo o teu rosto pálido sem orvalho
Não sei definir ao certo
Se foi o outono
Ou inverno quem traiu-te
Talvez seja o teu desejo
Provar outros paladares que brilham
Ou fingem brilhar nos cantos escuros
Quiçá!
São segredo dos deuses.