ALINE SILVA
Aline Silva Nobre é do Sertão do Ceará. É autora do livro "Mulher-Contestada" (Urutau, 2021) e das Zines “Estrela”, “Animalia” e “Poemas para depois do fim”. É co-fundadora do Coletivo Transfabuladores e, depois de publicar textos em antologias, blogs e jornais, tem se aventurado nas colagens manuais e digitais, uma forma além-palavra de se expressar. Em outubro deste ano irá lançar o livro "não existem Borboletas na antártica", que faz parte da coleção Budega SertãoPunk, da editora Caju de Ouro.
Instagram: @alinesnobre @escrevaline
1 - sobre um trem e um passarinho
um dia eu quis ser trem
no trilho
rápida
na linha
pontual
eu até fui trem por um tempo curto
quando eu não sabia que eu podia fazer o meu próprio caminho
eu fui trem
segui as regras
cheguei na hora
andei na linha
eu só não fui mais trem
porque eu não sabia gritar
o meu piuí era tão baixo
que só eu podia escutar
mas depois de saí dos trilhos
vagarosa
fora de linha
fora de hora
eu aprendi o grito do trem
e embora eu não mais o fosse
eu já gritava tanto quanto ele
nas estações todas
inverno
verão
outono
ou primavera
eu gritei tanto em cada plataforma
que já não haviam mais vagões dentro de mim
nem vagões
nem vagas
e nem vazios nenhum
agora
eu sou passarinho
sem rota
nem rumo
nem destino
e nem trilho
só um passarinho
voando
lado a lado
das locomotivas.
2 - sabores
eu gosto de gente
que gosta de gente
que gosta de abraço
e que gosta de mim
eu gosto do som
que o silêncio em mim faz
que ecoa em mais ais
e parece sem fim
eu gosto da risada da Amanda
do olhar da Vitória
e do humor do João
eu gosto da saudade que aperta
quando sabe que é certa
o retorno, a união
eu gosto do cheirinho da chuva
que alegra a viúva
quando cai no sertão
eu gosto é de abraço apertado
de beijo demorado
e do entrelaço entre mãos
eu gosto da demora de agosto
das águas de março
e do janeiro apressado
eu gosto de quem tem afeição
e quem não abre mão
de um amor demonstrado
é gosto é de poema falado
de canção entoada
mesmo se a voz falhar
eu gosto de escrever o que sinto
pois no verso eu não minto
nem se estória eu contar
eu gosto da beleza da vida
com seu gosto agridoce
na minha língua a travar
eu gosto é desse gosto incerto
e se existe algo certo
é que a vida é muito
mais muito gostosa
de se gostar.
3 - quimera
todos os dias vejo coisas belas e mágicas que os treze megapixels da câmera do meu celular não conseguem captar
vejo pequenas mariposas no banheiro de manhã
cada uma com sua composição única de formas e cores
e eu tento guardar na minha própria memória interna
que quase sempre teima em me sabotar
eu vejo no entardecer o arrebol alaranjado
e sinto a sensação de ser parte
ser arte
quando um raio de sol de repente decide me tocar
me convidando a ser entardecer também
e eu tento guardar essa sensação com muito afinco
mas no dia seguinte eu já me perco naquilo que senti
são muitas as coisas que uma câmera de treze megapixels não consegue captar
mas tem uma em especial
- o brilho dos teus olhos -
que eu queria muito e sempre e tanto encontrar uma maneira de guardar
porque minha memória tem sido falha
e a única coisa que ela consegue armazenar
é a sensação de euforia e prazer
quando estou bem debaixo
do brilho
- multicolorido -
desse teu olhar
4 - quarto
o quarto ganhou uma quarta ou quinta nova dimensão
estudo, trabalho, namoro, relaxo
como, durmo, choro e canto
tudo no mesmo canto
entre quatro paredes amarelas
entre uma janela com grades e uma porta trancada
eu vivo
vivo?
o quarto ganhou uma quarta ou quinta nova dimensão
aqui eu voltei a escrever poemas à mão
aqui eu agora armo uma rede pra ler
aqui eu reflito se quero morrer
reflito se a morte ou a vida me bastam
eu morro
ou preciso viver?
o quarto ganhou uma quarta ou quinta nova dimensão
eu trouxe três plantas
para não ser sozinha
eu comprei mais livros
para não ser sozinha
eu voltei a tocar violão
para não ser sozinha
ou foi para
ser sozinha?
o quarto ganhou uma quarta ou quinta nova dimensão
o ar que respiro
é o que sai da minha boca
a boca que eu beijo
é somente a minha
o quarto ganhou uma quarta ou quinta nova dimensão
para que eu continuasse cabendo
quando estou em plena expansão
ou explosão?
não sei das respostas
só sei que
o quarto ganhou uma quarta ou quinta nova dimensão
dá pra sentir até
no espelho
que agora - amigo -
me fita
e
na elasticidade
deste novo do chão
que
o quarto ganhou uma quarta ou quinta nova dimensão
5 - quando estou com a mulher que amo
quando estou com a mulher que amo
atravesso ruas como imigrantes clandestinos atravessam fronteiras
vou à exposições de museus como quem planeja roubar um portinari legítimo
e estar prestes a ser descoberto
frequento bares e me sinto como um contrabandista
com mil olhos de desconfiança ao meu redor
eu a beijo em público e me sinto como quem pela primeira vez no mundo fez topless na avenida
e a polícia está prestes a chegar
quando estou com a mulher que amo
tudo me parece estranhamente bom e perigoso
porque estou com a mulher que amo
e porque sou mulher também.